sábado, 16 de outubro de 2010

Sobre a arte de viver e morrer na estrada


Viver é uma arte, já se sabe os que realmente vivem. Entre a segurança e a liberdade, há controvérsias sobre o que é melhor. O tempo e a qualidade de como se vive, esses sim podem explicar a essência de uma opção.

I - Microcrônica – Todo vôo tem um risco

Cenário: hospital. Barulho de vozes, cheiro de álcool. Dor de cabeça e na perna. Ernesto abre os olhos.  Enxerga a mãe, chorando. Médicos no entorno. Um acidente, horas atrás. Perna fraturada, dessa escapou. Recuperou-se bem, já come e fala. Entre uma fisioterapia e outra, a mãe, apreensiva, arrisca perguntar. “Já é suficiente o que houve, vais abandonar essa vida de perigo e vender aquela máquina de morte?”. Ernesto levanta a cabeça. Um olhar seguro e sereno dentro dos olhos acompanha sua voz em tom de convicção. “Viver é fútil, morrer é incerto, e a liberdade tem seu preço. Vou voar sobre as rodas até quando meu corpo puder suportar o vento. Porque todo vôo tem seu risco". (Dedicada ao meu cumpa W.U).

II – Crônica - Camila aprende a acelerar

Camila aos cinco anos imaginava desde a infância como seria ter em suas mãos o controle sobre um veículo automotor. Andava de carro com seus pais todos os fins de semana, nos passeios ao Sítio, em Clevelândia, pequena Cidade do sudoeste paranaense. Pela estrada, tudo andava rápido: animais, casas, árvores e nuvens. Porém, muito mais velozes eram os outros veículos. Estes zuniam em seu ouvido, causando uma sensação de que estava no interior de uma bala de revólver, recém disparada. A velocidade a fazia poderosa, e cada ultrapassagem era uma nova aventura. Foi por isso que a decepção foi tão grande com o seu pai, de quem esperava ganhar, pelos seus 15 anos e por ter de aniversário uma Jogue – modelo de pequena motocicleta - mas recebeu um relógio banhado a ouro. Seu José, um pobre agricultor descendente de família humilde e que nunca ganhou presentes em sua adolescência, ficou revoltado com a cara de insatisfação da filha, ao receber o embrulho do pai. “A juventude de hoje só quer o que a gente não pode dar” bradou rispidamente, retirando-se no em plena festa de debuta da filha, só retornando ao final da noite quando todos os convidados haviam ido embora. O tempo passou, os anos voaram como aqueles carros que assoviavam ao seu ouvido. É claro que a família não estranhou quando ao completar 18 a primeira atitude foi matricular-se em uma auto-escola. Agora estava ali, ao lado de seu instrutor, na primeira aula prática de direção. Por falta de oportunidade, medo ou proibição, nunca havia encostado a mão no volante para dirigir, e não via a hora de fazer isso. Já havia feito uma série de outras provas teóricas, que sabia necessária, para pegar a estrada, embora ainda não tivesse muita noção da dimensão de importância desses testes. A aventura, na verdade, era aquele momento, tudo o que queria. O instrutor, com pelo menos 30 anos a mais que ela. Não era bonito, mas isso não importava. Demorou-se 20 minutos dando orientações sobre os componentes do painel e os procedimentos básicos, antes de dar a partida. O coração pulava de seu corpo e na hora em que chegaram à uma rua mais isolada, o orientador pediu que assumisse o volante. Era o momento. A estrada era sua. Ligou o veículo, pé na embreagem e no acelerador, marcha adequada, olhar a frente e, pronto, o carro se movimentava. Não havia palavras, naquele instante, nada mais ouvia. O tempo parou, a vida mudou, tudo seria mais rápido. Foram poucos os segundos, 200m, mas inesquecíveis. Nada seria como antes, se constituíra um projétil, poderia ser mais veloz, só uma questão de tempo. Mas dentro dela algo mais ficou daqueles instantes. A idéia de que um projétil não apenas voa livremente, mas também fere e mata.


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