quarta-feira, 22 de junho de 2011

Marcas definitivas para portas sem saída

Era início da manhã de um sábado quando seu Jorge, o supervisor, chegou com a equipe. Com seu jeitão de durão (pelo menos assustava os estranhos), já dando as orientações para os operários. E João lá estava - porque sabia o que ocorreria ali. No piso frio, frente à porta, sentado e com as pernas cruzadas se mantinha intacto. Seu Jorge já tinha visto de tudo naquela Casa de Estudante, mas aquele doido sempre surpreendia; outra vez vinha problema, pensou. “O que fazes aí, rapaz, os caras tão com pressa, e tem que começar a pintura, Combinamos isso na reunião de quinta, não vou recuar”, ficou o pé. E João, que estava meio em outra órbita - não chapado dessa vez, apenas meditando - levantou calmanente os olhos. “Essa porta não pode ser pintada, tá nela poemas meus dos últimos três anos, é parte de minha história; minha e de mais uma dúzia de moradores e ex- moradores dessa casa”, apelou em um tom meio choroso. Seu Jorge, pacientemente, retorquiu. “João, as portas tão imundas, demoramos três meses para conseguir fazer isso com dispensa de licitação e o serviço vai ser feito, seja como for. E virou-se aos trabalhadores (já meio inseguros então). “Começamos por cima, depois retornamos a esse andar”, ordenou. João apenas baixou a cabeça, parecendo se fazer meio de surdo. Bastou Seu Jorge subir as escadas, abriram a porta do quarto 21, o da “trio maravilha”, e saiu Lucimara e Fabio, falando quase junto. “E agora, o que se faz, João? Não tem jeito, o cara tá decididio e tua porta de poema, já era”, findou Fábio. Mas Lucimara, mais perserverante e esperta, reagiu. “Um cacete! Ninguém pinta as poesias dessa porta, e pronto”, falou quase como um grito. “Esperem aqui”, e saiu de supetão. Fábio e João ficaram se olhando. Enquanto isso, o trabalho dos pintores no andar de cima já tinha começado. Os dois, meio confusos, foram para dentro do “quarto-casa” tomar um café e matutar o que fazer. Um pouco também preocupados com a determinação de Lucimara, brigar não era o objetivo dos dois. Queriam apenas preservar aquelas reflexões, que misturavam épocas, gerações e perturbações de poetas, e até talentos nascido naquela casa. Riscados na parte central da porta dos quartos, e naquele em particular, aqueles versos atravessaram décadas, desde a fundação daquela casa. Ficaram reflexivos, quase decididos a ir até Seu Jorge tentar argumentar novamente, quando, de repente, ouviram um barulho na porta. Eram os pintores chegando para lixar, iam começar o trabalho. João ia falar algo de novo, ensaiou sentar outra vez na frente da porta, mas dessa vez foi Lucimara que o impediu. “Espera João, chegamos a um acordo.”, interferiu. E ele, atônito, gritou - “Vamos ceder assim, no más? Logo você, que não desiste fácil?”. Luciana olhou em tom paciente. Deixa os caras trabalhar, disse firme, e impôs o respeito que detinha. Então, dando de ombros, João e Fábio se olharam, e saíram porta a fora, com uma fisionomia de trizteza, decepção e raiva. “Nem quero ver isso, vai me doer”, disse ainda Fábio, quase num suspiro. Os pintores pegaram as lixas e começaram o trabalho. A dupla, por sua vez, pegou o primeiro ônibus, e se foram para o Centro. Almoçaram na casa de um amigo da República, passaram na Usina e emendaram a tarde na Redenção. De volta, depois de muito conversarem sobre como as pessoas mudam e o que vale a pena acreditar, se encaminharam para descer a escadaria externa, que dava acesso ao saguão. Foi quando, ainda de longe, perceberam um clima estranho. Um grupo de uns 10 moradores tomava chimarrão em um bate-papo entusiasmado em frente à porta principal. Sabiam que quando isso acontecia o ambiente estava muito bom na Casa. Ao vê-los, todos olharam para eles. Os dois não demoraram para perceber Luciana entre o grupo. Não entenderam nada. Foi Danilo, da filosofia, que saiu na frente ao encontro de ambos para anunciar - “Cara, surpresa. As portas foram pintadas, a Casa está linda”. João e Fábio, ficaram mudos, mas foi Fábio que largou o verbo - “Beleza, para mim, tem outro sentido, cara!”, e virou as costas, seguindo João, que já estava passos à frente. Ao entrarem na Casa, Luciana, com o grupo, nada disse. Mas, ingressando no prédio, olhou em um tom meio risonho. E, no corredor, ambos se dirigiram ao quarto, nem reparando que folhas de jornais granepadas, amarradas por um único barbante do corredor, cobriam as portas no caminho até o quarto 21. Inventaram outra festa, pensou João, mas percebendo que todos os seguiam. Tudo muito estranho. Matutou em pensamento. No exato momento em que Fábio e João chegaram em frente à porta do quarto que residiam, o barbante suspenso que mantinha as cortinas de jornais (inclusive frente à sua porta) foi solta e a surpresa veio em múltiplos sentidos. “Agora Danilo, cochichou Lucimara”, e o mundo brilhou nos olhos de Fábio e João. Em um alto falante, discretamente colocado no canto do saguão, disparava All You Need Is Love (Ouvir Beathles era uma forma de celebrar conquistas por ali, e tudo era motivo fácil para isso). Quase no mesmo momento, ambos descobriram a porta pintada, mas muito diferente do que imaginavam. Na parte externa, preservando os rabiscos de assinaturas, poemas, canções escritas entre as décadas de existência daquela moradia, por seus residentes. A tinta tinha sido aplicada apenas em bordas largas, o suficiente para não prejudicar os textos no seu interior. Faixas de cinza claro no entorno, ao invéz de apagar, ajudavam a dar mais contraste às cores internas dos versos escritos em canetas coloridas. Completamente pintada estava somente a parte interna das portas de todos os quartos, onde ninguém costumava rabiscar (deixavam isso para os guarda-roupas). E o estilo se repetia em todas as portas daquele andar, que era conhecido como “Ala dos poetas”. Perturbados, Fábio e João procuraram Lucimara, que apenas sorriu. “Quis fazer uma surpresa”, um abraço coletivo se sucedeu. E no ouvido de anbos, ela gritou: “Voces acham que eu ia amarelar assim, seus cabeções??”, explicando.. “Negociei com Seu Jorge que a pintura fosse com cores diferentes em cada andar, e no nosso, com esse estilo, e ele topou manter a coisa parcialmente”. Foi João, que quase em lágrimas, perguntou em palavras atropeladas - “Não acredito!!!! Como tu conseguiu dobrar aquele velho teimoso???”. Luciane, novamente, no seu olhar malicioso e tranquilo, revelou a carta na manga. “Ele tem uma sobrinha que morou aqui em 1991, não sabia? Eu sim, as meninas do térreo me disseram. É ela, apontou para a ruiva que estava logo ao seu lado.”. Não foi difícil para João reconhecer a menina. Era de Soledade e costumava vir às festas da casa. Agora ali, com aquele sorriso doce, parecia mesmo um anjo, especialmente pelas circunstâncias. E o convencimento disso se reforçou a cumprimentá-la e ouvi-la. “Meu tio me devia isso. Ele me ensinou a desenhar quando pequena. E dizia: tudo que sai de dentro é bonito. Aproveitei e cobrei agora essa lição”, contou. “Os quatro, então, se abraçaram, com João quase rindo e chorando ao mesmo tempo”, agora no clima sonoro de “I Want To Hold Your Hand”. Mas a quebra final foi de Osmar, da Educação Física, que fez a proposta em outro grito – “No meu quarto tem pipoca quentinha com pôquer”. A festa estava completa para o final de uma tarde de sábado, naquele fim de mundo e novo início de cada um.

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