sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Superar, o verbo vital de Edinho

 Boas notícias me chegam pela internet, sobre o meu amigo e ex-aluno Edinho, que tive oportunidade de conviver no interior do Paraná pelos anos de 2004 e 2005. Ele anda a mil na ativa, como atleta, profissional e entusiasta. Nada muito surpreendente, não fosse o fato de administrar essa e outras atividades diárias sob uma cadeira e roda, com a fala limitada, assim como os movimentos dos membros. Ao saber ontem que Edinho está para se formar em Educação Física e que foi, em 2010, campeão do 12º Campeonato Brasileiro de Bocha Adaptada (Uberlândia – MG), entusiasmei-me e resolvi por aqui hoje o artigo que escrevi, inspirado na situação de Edinho, há alguns anos. Creio que a atualidade política da questão é notória em um período que se fala tanto em inclusão e acessibilidade. Sobre eventuais desatualizações de dados no texto, observo que o mesmo foi produzido em 2008, um desconto portanto é necessário nesse aspecto. Eis ele abaixo.

Outro título: vitória em Uberlândia  é celebrada por Edinho
Superar, o verbo vital de Edinho

Ação onde se estabelece uma relação, em que a mensagem dos atores é mutuamente ouvida e entendida. Essa é uma definição possível da comunicação, entendida como relação social, que abrange a grande maioria das formas de convivência humana.

Mas, considerando uma perspectiva total, e não somente majoritária, o conceito acima contemplaria todas as condições e capacidades de comunicação? Essa Questão leva à algumas outras cogitações, tipo: Como os cegos estabelecem comunicação com o mundo à sua volta, do qual mantêm apenas noção sonora? O que os surdos entendem é somente o que está escrito, ou possuem outras possibilidades de audição com relação a quem os cerca? Finalmente, as pessoas com deficiência que tem a fala afetada - como os paralíticos cerebrais - são ouvidas e entendidas como e por quem?

Com base em um senso superficial, a resposta à tais perguntas seriam respondidas através da enumeração das várias formas de expressão, a que recorrem esses seres humanos, de capacidades diferenciadas – entre os que podem custear tais suportes - para suprirem uma determinada limitação física natural: escritas e falas adaptadas; aparelhos de adaptação sonora, auditiva ou audiovisuais... seria isso argumento válido em um contexto em que predominasse sensibilidades públicas e individuais; em uma realidade social marcada pelo respeito ao próximo - tanto pelas suas qualidades semelhantes, quanto pelas suas características diferentes, enfim, onde houvesse os meios e as condições para que a grande massa de pessoas com deficiência pudesse viver em condições humanas e dignas, independente de suas dificuldades físicas.

Como esse tipo de consciência está, infelizmente, muito distante do conteúdo dos currículos da instrução escolar formal; da concepção de espaços e necessidades da maioria dos governantes públicos e da classe empresarial, é praticamente impossível se falar em comunicação em uma atribuição de sentido pleno, se não falarmos em inclusão social. E para ilustrar isso, quero relatar uma experiência de convivência que tive há alguns anos com Edinho, um pára-atleta com paralisia cerebral. O relato desse convívio deve servir aqui para sustentar a minha tese de que quando se fala em Comunicação, mais do que os sentidos físicos, é preciso considerar os sentidos antropológicos, ou seja, aqueles que tem a ver não só com o que outro percebe, mas também – e, nesse caso, fundamentalmente – sobre o que os interlocutores sentem durante o ato comunicativo.

Sensibilidades especiais

O jornalista Antônio Maria, afiado cronista que escrevia para o jornal Última Hora (RJ) nos anos 50, não tinha nenhum problema físico ou mental expressivo quando o poder crítico de sua palavra o causou uma séria hostilidade. No início da década de 60, ele teve as suas mãos covardemente pisoteadas como forma de repressão a manifestações indesejadas por agentes do governo censor. Mas foi justamente nessa ocasião que ele fez uma declaração que se tornaria célebre no jornalismo, e que e que poderia ser transposta para a realidade que move muitas pessoas com deficiência: “Que bobos, eles pensam que os jornalistas escrevem com as mãos”. Mais de quatro décadas depois percebo e entendo o que Antônio queria dizer. Edson Slonski, meu aluno no primeiro ano no curso de jornalismo, depende de cadeira de rodas para andar e escreve e fala com dificuldade, mas se nega a abandonar o propósito de exercer esse ofício.

Detentor de Paralisia Cerebral (PC), por conseqüência de uma convulsão nervosa aos 40 dias de vida, Edson - ou Edinho como é mais conhecido onde mora - tem o movimento das pernas, a coordenação motora e a voz comprometida. Isso o torna totalmente incapaz? A resposta ele mesmo dá com sua intensa rotina: distribui o seu tempo entre uma gama de atividades variadas: É pára-atleta; jornaleiro (em uma banca que trabalha sozinho a maior parte do tempo); enxadrista, além de auto-promotor (luta por patrocinadores para as competições que participa). Edinho se usa pouco as palavras, tanto escritas, quanto faladas. Gestos também não uma capacidade explora nas condições em que vive. Como explicar o respeito, simpatia e admiração que recebe diariamente de dezenas de clientes, que com ele se comunicam? E como gerencia o seu negócio e a sua vida acadêmica e social, em meio à uma sociedade que mal se entende no próprio idioma?

A resposta à isso não é tão objetiva, pois está imbricada entre vários outros fatores, que tem a ver com habilidades de auto-afirmação e auto-superação, que são cultivadas por muitas pessoas com deficiência. Tais aprimoramentos, muito mais do que auxiliar em sua integração social,  contribuem para destacar diferenças qualitativas que, mais do que valorizar novas faces da própria existência, constroem laços especiais de socialização e, conseqüentemente, de expressão entre essas pessoas com deficiência e o seu círculo de convivência humana.

Como milhares de outros em condições semelhantes às suas, na contra-mão de suas limitações físicas e sociais, Edinho negou-se a assumir a passividade convidada pelos estereótipos pseudo-solidários que contaminam a construção da cidadania no Brasil: optou por não se auto-aceitar um coitadinho. Quer muito mais: Estudar, trabalhar, amar, divertir-se, enfim, viver. Nada mais do que um direito que deve ser concedido a todos, indiscriminadamente.

Ao transformar a suas limitações em uma dimensão afirmativa de seus objetivos, Edinho tem avançado progressivamente. Prova disso, é a medalha de prata que conquistou em 2002 na Copa América de Bocha, realizada na cidade de Topeka, em Kansas, Estados Unidos. Uma, entre tantas outras premiações que ostenta com orgulho na pequena banca de jornal onde trabalha. Procedente de família de baixa renda, Edinho ajuda no sustento da casa, mas queria muito mais: concluir um curso superior, de comunicação social. Graças, porém, a falta de uma política educacional qualificada para acompanhar sua formação, Edinho acabou tendo que se afastar do curso. Desistiu de fazer uma faculdade? Engano. Faz atualmente educação física, na mesma cidade.

Seria ousadia para um paralítico pleitear algo que uma parcela reduzidíssima da população brasileira almeja? Sim. Mas quem em nosso País consegue conquistar um objetivo distante sem ousar? Especialmente se considerarmos os espaços de interação, não menos reduzidos, que as pessoas com deficiência no Brasil dispõe nas políticas públicas, quadro este que começa aos poucos a mudar. E já era hora.

Nem coitadinhos, nem super-homens


Dados do censo 2000 do IBGE, divulgados pelo Centro de Documentação e Informação do Portador de Deficiência (CEDIPOD), dão conta que há no Brasil 34.580.721 portadores de algum tipo de deficiência, cuja natureza do caso distribui-se em 16.644.842 - visual; 7.939.784 - motora; 5.735.099 – auditiva e 2.844.93 - mental e 1.416.060 - física. Considerando que cada uma dessas pessoas corresponde pelo menos a três outras (parentes, amigos, profissionais da área da saúde, fornecedores de equipamentos auxiliares, etc.) diretamente envolvidas e/ou interessadas no assunto, essa questão tem a ver com muito mais gente do que se pensa a priori: pelo menos metade da população brasileira.

Mas Edinho, como a maioria dos PCs, não é e nem deve ser visto como um super-homem. É  positivo que se aprecie o seu esforço desigual por abrir frestas em meio à uma sociedade duramente competitiva. Porém, essa admiração não basta. As pessoas com deficiência precisam do apoio do Estado e das pessoas vinculadas à todas às demais dimensões sociais que envolvem a sua relação com o mundo. Um respeito e reconhecimento, através de direitos (não só no papel) que assegurem oportunidades condizentes com as suas capacidades. Por outro lado, a facilitação de sociabilidade à esses indivíduos não pode ser cultivada como mera prática de favor ou caridade. Trata-se de muito do que isso. É um dever de todos brasileiros lúcidos e conscientes de que a tolerância à diferença é um pré-requisito essencial para a consolidação de uma nação democrática.

A Associação de Paralisia Cerebral do Brasil (APCB) esclarece que a paralisia cerebral não é uma doença, mas um distúrbio ocasionado por uma lesão de alguma(S) parte(s) do cérebro. Dependendo da área afetada, e da sua extensão e localização, pode gerar outros problemas além de distúrbios neuro-motores. Acontece durante a gestação, durante o parto ou após o nascimento. É uma lesão provocada, muitas vezes, pela falta de oxigenação das células cerebrais. No caso de Edinho, a paralisia compromete apenas a área de seu cérebro referente à coordenação motora. Contudo, mesmo em outros casos, a possibilidade de ter sentimentos já é razão de sobra para que o PC seja respeitado como cidadão.

Nas telas e na vida

Muitos são os exemplos de determinação por parte dos PCs. No cinema, ilustrando essa realidade, destacaram-se os filmes Gabi – Uma história verdadeira,  uma interpretação da vida da Gaby Brimmer, a mexicana que escreveu um livro apenas com um dedo, indicando palavras a partir de uma tabela, interpretada por Rachel Levin. Na versão masculina, Meu Pé Esquerdo retrata a vida do jovem Christy Brown, talentoso e perseverante artista irlandês, com paralisia cerebral, interpretado por Daniel Day-Lewis. Nesse caso também, em decorrência da doença, a única parte do corpo que ele podia controlar com precisão era, justamente, o seu pé esquerdo.

Na vida real, também sobram exemplos de que a determinação vai além da aparente incapacidade física. O Programa Especial, apresentado há mais de sete anos - antes na Tv Educativa do RJ e agora na TV Brasil - pela publicitária Juliana Oliveira, é um deles. Juliana tem 28 anos e é há seis tetraplégica por causa de um acidente de carro. Independente disso, ela mostra que pode muito além do que se imagina pelas aparências. Além de apresentar esse Programa, dedicado aos deficientes, ela faz mestrado em administração no COPPEAD / UFRJ. Também fala inglês, francês e espanhol. Para ser escolhida apresentadora, Juliana passou por três etapas de testes. O Programa Especial aborda experiências e problemas e inovações relacionadas à vida das pessoas com deficiência.

No caso de Edinho, que possui limitadas capacidades motora e fonética, o seu desempenho acadêmico no curso de comunicação certamente dependerá, mais cedo ou mais tarde, de recursos tecnológicos e apoio de especialistas, meios estes que ainda não dispõe. Mesmo com a capacidade de pensamento e reflexão em perfeita sanidade, limitações físicas impedem o pleno aproveitamento do seu cérebro. “Tem muito mais aqui dentro”, desabafou certa ocasião à uma professora diante da cobrança pela entrega de um trabalho digitado no tempo encerrado.

Mas aparentemente ciente de onde e como quer chegar, ele não deixa por menos. “eu não quero ser apenas um número”, disparou à mim, certa vez, em tom de exigência e, em outra ocasião, expressando certeza: “eu não vou desistir”. Hoje, mais do que crer nisso, jamais duvidaria. Além de prosseguir em suas atividades profissionais, sociais e esportivas, Edinho tem agora uma atividade política - é candidato a vereador nessas eleições. Quanto ao preconceito, a intolerância e a resignação, que se cuidem em União da Vitória.
                                                                                         




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