Oportunamente, falo mais sobre Madruga, a pessoa e amigo de 20 anos. Por hora, reproduzo esse texto sobre um de seus principais trabalhos.
UM LIVRO QUE SE RENOVA
Por
Paulo Bentancur
Publicado
em meio aos anos de 1980, Tiremos a Sorte marcou o conto no extremo
sul do Brasil, num momento de transição política vital par o país.
Saía-se dos porões de uma ditadura para o sol ainda incerto de uma
democracia titubeante. Reaprendia-se a falar claro, sem as
estratégias fundamentais em tempos de ausência de liberdade. Artur
Madruga estreava na literatura com um volume de histórias breves
onde essa liberdade já surgia plena. Ganhando prêmios, recebendo
críticas favoráveis.
Primeiro,
pela estrutura dos contos, entre a crônica lírica e a confissão
psicologicamente conduzida até um limite no qual o narrador meio que
se dissolvia. A expressão não é forçada: dissolver-se como uma
maneira de se entregar o mais fundo à própria condição humana.
Dar-se ao ser que há em si e no outro como um jeito corajoso e nobre
de perder-se para o encontro maior. Espécie de dispensa de uma
casaca, inútil agora que era possível achar a essência.
Os contos
de Madruga não repetiam os truques da época ( o discurso engajado
embutido em algum disfarce episódico) e nem fugiam do enfrentamento
com as precariedades de suas personagens.
Há um tom
inevitável de réquiem em quase todas as tramas, e os protagonistas
constituem-se em sujeitos à deriva sem que se emita o velho pedido
de socorro dos desesperados. Caem, porém o abismo é uma forma de
renovação e nessa queda ocorre uma metamorfose que é do país lá
fora e do autor internamente.
Uma das
maiores qualidades do livro é o poder de sugestão que ressuma de
suas páginas. Raras são as figuras não performáticas. Na maioria,
os que vivem o drama narrado agem como se fossem animais mitológicos,
estátuas da arte clássica, homens extraviados num tempo
apocalíptico, almas carregadas por uma paixão que mais aquece
contra o frio iminente do que as inflama com um desejo previsível.
Não cabe
em nenhuma síntese semelhante livro porque a renovação da
contística nele está contida. Artur Madruga foi além do que o
gênero até ali oferecera aos leitores. E superando barreias não só
políticas, mas literárias, plantou um discurso livre de qualquer
discurso – um percurso que vai dar num mar talvez agitado demais,
num céu sem nuvens, em luzes que desenham o dia e a noite e criam
movimentos adicionais no rosto expressivo de seus personagens.
É livro
para ser filmado, para ser levado ao teatro, para ser lido,
sobretudo. Como conto, como crônica, como poema em prosa, como um
salto sobre os muros já derrubados de tempos sombrios e sobre os
muros de qualquer proposição estética. Vê-se um olhar agudo para
a pintura, um ouvido atento para a música, um ritmo que se alimenta
da própria frase, palavra a palavra, para melhor alimentá-la.
Tiremos a
Sorte parece até mesmo um título ocasional. Algo que não pretende
mais que o gesto humilde de abrir o peito e eviscerar-se num ritual
de sacrifício para possivelmente merecer, se não o mundo, o amor de
alguém. Mas não há um jogo – não intencionalmente. Há uma
decisão em cada história. A decisão mais difícil: desenhar a
própria face no que ela tem de mais secreto e, por isso mesmo, mais
convincente.
Quem sabe
essa é a razão de o livro ter permanecido com a mesma força
literária de mais de vinte anos atrás e, hoje, relido, mostrar-se
em meio ao que se publica por aí, uma surpresa tão nova quanto foi
na década de 1980.
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