"O capitalismo de produção e do consumo trouxe essa ideia de produzir mais em menos tempo. O que não era esperado é que essa ideia fosse invadir todas as esferas da vida cotidiana". Texto completo aqui.
É o seu dia de folga e você quer se sentar para ler esta
reportagem. Mas, enquanto repousa os olhos nestas linhas, todos os outros
desejos alinhados na fila da memória, à espera de tempo, disputam a sua
atenção.
Aí você pensa que este texto é grande demais.
E sente uma angústia porque queria ir até o fim, mas também
tem ali parado aquele outro livro, aquele trabalho para fazer, o filme que
queria ver, aquele passeio com a família que há semanas você promete para si
mesmo, a pilha de roupas para lavar, o curso de francês por começar. Quem sabe
seja melhor largar tudo para assistir àquele vídeo na internet que ensina como
tirar sua camiseta mais depressa. Três segundos que serão poupados se você
puxar a manga com o braço dobrado no ângulo exato. Tcharááán! Seus problemas
acabaram! Só que não. Affff.
Se os sintomas lhe são familiares, bem-vindo à síndrome da
falta de tempo, que ganha ares de epidemia contemporânea. Nem tão nova assim,
na verdade. Não é de hoje que o homem sofre com a gestão dos seus dias. Desde
os primórdios da Era Cristã, o filósofo Sêneca já lamentava que “parte do tempo
nos é arrancada, parte nos é subtraída por amenidades, e o resto escorrega de
nossas mãos”. Mas a vertiginosa “compressão espaço-tempo”, como cunhou David
Harvey no livro Condição Pós-Moderna (Loyola, 1996), tem elevado essa angústia
a novos patamares, ao suprimir fronteiras e multiplicar conexões, com uma
aceleração crescente que invade todas as esferas da vida, empurradas pelo motor
do capitalismo. O problema é que, na mesma proporção em que aumenta a pressão
pelo tudo-ao-mesmo-tempo-agora, crescem os dilemas pelas possibilidades não
alcançadas, por tudo que deixará de ser feito. E aí o resultado é gente
correndo, correndo, sem saber bem o porquê, nem para onde.
Não por acaso, pesquisa divulgada pelo Ibope em dezembro
revelou que 35% dos brasileiros se sentem escravos do tempo – e que um terço
dos entrevistados gostaria de comprá-lo, se isso fosse possível, dispondo-se a
pagar R$ 50 por uma hora a mais em dia útil e até R$ 85 por uma hora a mais em
dia de folga. Enquanto a mágica da multiplicação temporal não acontece,
proliferam reações na direção contrária, questionando o culto à velocidade e a
aura de glorificação que exalta os ocupados.
A expressão “doença do tempo” foi cunhada em 1982 pelo
médico americano Larry Dossey, para se referir à “suposição obsessiva de que o
tempo está fugindo, vai acabar faltando e é preciso estar sempre pedalando cada
vez mais rápido para não perder o trem”, como descreve Carl Honoré no livro
Devagar (Record, 2006). A publicação é um dos principais ícones do Slow
Movement, que prega a necessidade de desaceleração da vida contemporânea.
Ex-workaholic convicto, o autor começou a questionar seu ritmo de vida quando
deparou com o lançamento das histórias infantis de um minuto, uma versão
condensada dos contos clássicos para acelerar a hora do sono das crianças. Num
primeiro momento, achou a ideia genial, porque vivia em cabo-de-guerra com o
filho de dois anos, fã das histórias longas e detalhadas, no momento de ir para
a cama. Enquanto calculava quanto tempo a editora demoraria para lhe enviar a
série inteira, sentiu o estalo: “Será que eu fiquei completamente maluco?”,
questionou-se o jornalista, que desde então persegue a ideia de que é preciso
encontrar o tempo giusto para cada coisa.
Foto: JEFFERSON
BOTEGA/ AGÊNCIA RBS
“O paradoxo do devagar nem sempre quer dizer devagar.
Desempenhar uma tarefa devagar frequentemente produz resultados mais rápidos”,
defende Honoré, salientando que a qualidade e a serenidade trazidas ao se
concentrar em uma tarefa tendem a trazer mais ganhos do que a pressa e a
superficialidade das sobreposições.
A missão de desacelerar é difícil porque tudo nos conduz ao
oposto. Professora titular do departamento de filosofia da USP e da Unifesp,
Olgária Matos analisa que a aceleração do tempo coincide com a vida nas grandes
metrópoles. No passado, o conceito de tempo era cíclico, regulado pelas
estações e pelas colheitas. A partir da concentração dos trabalhadores nas
cidades e da disseminação do trabalho em escala industrial, no século 19, o
modo de produção fabril passou a invadir outras dimensões da vida. No início,
houve reações: o aumento do tempo de trabalho era experimentado como uma espécie
de tortura, e os trabalhadores resistiam ao serviço noturno, ligado à
industrialização. Tanto que trabalhar antes do alvorecer ou depois do
pôr-do-sol era considerado imoral.
– O capitalismo de produção e do consumo trouxe essa ideia
de produzir mais em menos tempo. O que não era esperado é que essa ideia fosse
invadir todas as esferas da vida cotidiana – observa Olgária.
O paradoxo é que, apesar de estarmos sufocados pela exaustão
de tanto por fazer, a filósofa sustenta que vivemos um tempo vazio, aprisionados
por um eterno presente, que conduziria ao tédio. Isso porque o sistema de vida
orientado para a produção e para o consumo de mercadorias levaria a uma
repetição de tarefas desprovidas de experiências realmente significativas.
Uma das consequências seria um sentimento de vazio, que
seria preenchido com válvulas de escape para “matar o tempo”, como o consumo de
drogas, o excesso de comida (e obesidade), a violência, a busca por esportes
radicais.
A definição de tempo vazio foi empregada pela primeira vez
por Walter Benjamin, um dos principais pensadores a escrever sobre os efeitos
provocados pela invasão do modelo fabril no cotidiano. Foto: JEFFERSON BOTEGA/
AGÊNCIA RBS
“A ideia de um progresso da humanidade na história é
inseparável da ideia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A
crítica da ideia do progresso tem como pressuposto a crítica da ideia dessa
marcha”, escreve Benjamin em 1940, na 13º tese do ensaio Sobre o Conceito de
História.
Para exemplificar como a cultura da pressa vã está instalada
na sociedade, Olgária cita uma pesquisa realizada na França com trabalhadores
desempregados de várias camadas sociais, em que eles também relatavam ausência
de tempo, ocupados em mandar currículos, dar telefonemas e buscar ocupações. A
constatação seria mais um sinal da armadilha desses nossos tempos: de tanto
correr e cumprir tarefas, não sabemos mais o que fazer com as horas livres.
– Somos mais agidos do que a gentes, o tempo vazio impõe a
nós seu ritmo e executamos tarefas cujo sentido nos escapa. Fazemos um monte de
coisas e depois nos perguntamos: mas por que tudo isso? Queria ter feito outra
coisa... – compara Olgária.
Esse ritmo tem seu preço. Para a psicanalista Maria Rita
Kehl, autora do livro O Tempo e o Cão (Boitempo, 2009), a explosão dos casos de
depressões nos países do Ocidente, a partir da década de 1970 deve ser
entendida como um sintoma social da contemporaneidade, um sinalizador do
“mal-estar na civilização”. O depressivo sofreria assim de um sentimento de tempo
estagnado, desajustado do tempo sôfrego do mundo capitalista. E seria malvisto
justamente porque é encarado como um “bug no sistema”.
– Essa aceleração tem relação com a depressão porque resulta
no sentimento de que a vida é vazia. Parece que quanto mais se corre, mais
coisas se põe no tempo, mas a vida se esvazia do valor da experiência. Você não
tem nada para contar num dia em que você correu de lá para cá. A experiência é
aquilo que você vive num tempo mais estendido – analisa.
Se serve de consolo, apesar das incertezas inerentes ao que
o sociólogo polonês Zygmunt Bauman chama de “vida líquida”, neste mundo em que
tudo escorre pelas mãos e se transforma antes de assumir um estado sólido,
nosso tempo não está diminuindo. Pelo menos não do ponto de vista cósmico, a
tendência é a desaceleração. O astrônomo Roberto Boczko, professor do Instituto
de Astronomia da USP, explica que o movimento de rotação da Terra vem perdendo
velocidade devido ao atrito provocado pelo movimento das marés. Durante anos,
Boczko foi o responsável por acertar os relógios atômicos do Instituto de
Astronomia da USP, que atrasavam a cada virada de ano por causa dessa
oscilação. O resultado prático é que, a cada ano, ganhamos um segundo a mais.
– Nosso dia está ficando cada vez mais comprido. A Terra
está parando de girar porque a subida e
a descida das marés gera atrito, o atrito gera calor, e esta energia está sendo
perdida – explica.
Será um sinal dos tempos?
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