Segunda-feira, eleição do segundo turno em todo o País finalizada. Entre mortos e feridos, cabe um diagnóstico sobre o desempenho da esquerda brasileira, com um olhar político em um futuro próximo. Aqui, por questão de proximidade e de tempo, vou me ater ao caso de Porto Alegre, com Manuela Dávila.
Primeiramente, cabe reparar que o meu olhar e as minhas considerações estão longe de um militante partidário. Já o fui, outrora; agora, por esses meandros da vida, me afastei do vínculo orgânico com partidos – ainda que tenha proximidades pontuais, como tive em um trabalho de apoio à candidata gaúcha nesta campanha. Agora, ainda militante por um projeto de sociedade mais justa, me atenho a um olhar crítico como jornalista. E de um lado, claro, porque todo jornalista que se preze tem lado.
Manuela foi uma candidata forte, dentro dos limites de sua história de vida e de sua experiência política. E merece o nosso respeito por isso. Manteve o nível político nos debates, com propostas, sem descambar para subterfúgios de ataques pessoais, mas também sem se omitir de contextualizar ou de responder a ataques de ordem macro, mesmo com o ônus de ter que explicar e esclarecer sobre eventos e práticas que não foi diretamente responsável. Diante de um oponente que surfou em uma rejeição implacável à candidatura feminina, comunista, jovem, vinculada ao apoio do PT – partido que sofreu e sofre uma desmoralização covarde e sem precedentes por uma Mídia que sempre foi parcial com relação à esta sigla – Manuela conduziu o processo eleitoral em um nível de qualidade, ampliando e consolidando um respeito considerável na cidade.
Por outro lado, há fatores que pesaram a priori nessa arena, a pontuar.
É bom que se lembre que estamos sob um governo nacional fascista, que diariamente comete aberrações discursivas e práticas, contra direitos humanos, trabalhistas, ambientais, sanitários, previdenciários e sociais, o que, obviamente contribui para engrossar o caldo de uma cultura de misoginia, de machismo e de aporofobia que não nasceu neste século, mas que se acentuou imensuravelmente nesta década, desde quando uma vizisibilidade institucional reacionária encontrou clima para sair do armário e se introjetou em um comportamento político institucionalizado e midiaticamente naturalizado.
Além disso, e acima desse triste ambiente de violência simbólica que a extrema-direita têm cultivado no País, já vínhamos atravessando nessas últimas décadas um processo de desencantamento com a política; esta, galopantemente perdendo espaço para um individualismo crescente, travestido em referências religiosas, tecnológicas, comportamentais e pseudo-libertárias, que o Deus-Mercado proporciona e é fértil para que se desenvolva.
O caminho da prosperidade em curto prazo, a partir de crenças em um Deus imediatista (e egoísta), sob um ambiente de ultra-precarização trabalhista, empolga e arremata as massas pelas periferias; a multiplicação dos pacotes de produtos audiovisuais amarra as pessoas em sua sala, como se o mundo lá fora perdesse a importância; a variedade gritante de possibilidades de consumo via teles e fasts fortalece um modo de ser artificialmente autônomo, em que o mundo se resolve via whatz; a emergência de uma espécie de militância virtual, proporcionada por redes virtuais – sustentadas em um clima de Pandemia propício e convidativo ao distanciamento social – parece satisfazerem as consciências sobre os meios e o nível necessário para mudar a vida, sem sair de casa, entre outros fatores dessa sociedade doméstica.
A propósito deste último vetor, e sublinhando sua importância no processo político brasileiro, a pandemia foi, e é, um novo divisor de águas no modo de viver coletivamente, a despeito de sua indiferença pela maioria dos governantes brasileiros e pelas pessoas que necessitam ir para a rua para sobreviver e não o amparo necessário em uma situação de fragilidade social como a que enfrentamos, mas excluem a política como uma atuação de primeira necessidade, já que, “eles só aparecem de quatro em quatro anos e não estão nem aí comigo”.
Sintomático, então, que, diante desse cenário de apatia social, uma candidatura de uma mulher jovem, comunista, em um estado conservador e historicamente machista, tenha sofrido uma derrota eleitoral, mesmo que para um candidato politicamente contido e associado às práticas da velha e superada política tradicional.
Some-se à isso, se quisermos, o desânimo e a falta de identidade dos porto-alegrenses com sua cidade, destroçada por década e meia de governos neoliberais, que, ao lado de governos regionais também retrógrados, agravaram na capital gaúcha o panorama de abandono urbano, de violência e de precarização notória dos serviços públicos, incluindo naqueles segmentos em que, outrora, a cidade já foi modelo nacional, como é o caso do magistério, do transporte e da limpeza urbana.
Mas nem tudo são espinhos, muito pelo contrário.
Manuela, como já mencionei, contribuiu fortemente para um certo reencanto com a Política, na medida em que associou a sua imagem à uma corrente positiva, propositiva e construtiva de transformação social, inserindo Porto Alegre em um circuito nacional importante. Trata-se de uma cadeia de forças que foi para o segundo turno, ou emplacou vitórias com candidaturas do campo progressista, a saber: São Paulo, Vitória, Salvador, Florianópolis, Curitiba, Belém, Recife, Natal, Aracaju, Fortaleza e Maceió. Reflete, portanto, uma base potencial e promissora para a esquerda nas quatro das cinco regiões brasileiras – isso para ficarmos só nas capitais.
Além disso, Manuela, enquanto candidatura feminina foi um das referências aclamadas como parte de uma emergência de uma força política de gênero, que é um traço marcante nessas eleições e que configurou com uma nova cara nos parlamentos locais de norte sul, o que fatalmente terá conseqüências interessantes no próximo pleito. Ainda que sua procedência seja da classe média, suas ideias e vínculos políticos reforçaram redes importantes de movimentos sociais, negros, rurais, de mulheres e de jovens, que tiveram e terão reflexos na rearticulação da ação política coletiva por esses pampas, assim como outras candidatura o fizeram pelas demais regiões brasileiras.
Desse cenário, para muito além de razões para a resignação absoluta, ficam muitos ensinamentos, perspectivas e desafios para a esquerda brasileira na sua construção de estratégias mais consistentes nas disputas políticas estão por vir, já com vistas às eleições presidenciais.
A noção auto-suficiente de certos partidos de esquerda, por exemplo, que foi operante outrora, já não dá conta de responder às demandas de um cenário político multifacetado, em que é preciso compartilhar espaços e lutas com outras forças que se constituem e se revigoram desde a base, e que a esquerda tradicional esqueceu ou deixou de dar a devida atenção. Não há lugar para mitos, ainda que a direita insista nisso, já é sabido que eles esfarelam com o tempo. O que fica, se for bem cultivado, são as experiências de qualidade e que respondam às demandas pertinentes à sociedade e às próprias equipes de gestão, porque servidor é mais que uma vitrine, um operador político de primeira ordem, gestor que se preze tem o dever moral de não esquecer disso.
Por outro lado, no caso do pleito presidencial que está no horizonte, mais do que estrelas, precisamos de um programa consistente e unificador na esquerda brasileira, como bem recomenda Requião. A partir disso, aí sim é necessário a construção do consenso em torno de uma candidatura que canalize as forças populares, responda as gritantes e urgentes demandas sociais que se avolumam nesses tempos bolsomínicos e que faça frente às armações ardilosas e perversas dessa direita que se inseriu nas estruturas institucionais brasileiras e que tão bem se retro-alimenta com a imprensa tradicional.
E, finalmente, o desafio que viceja no qual Manuela representa parte na construção, tem a ver com a manutenção, ampliação e fortalecimento da base social que apoiou as candidaturas de esquerda pelo País e que ainda acreditam na Política como instrumento para mudar a vida. Sim, Ciro tem razão, considerar a desigualdade é um foco central; mas, sem equidade, é uma farsa. Se faz urgente, então, a atenção em se recuperar para esse embate federal as energias dos povos tradicionais do campo e da cidade, dos movimentos sociais urbanos e rurais e das redes sindicais, comunitárias e de gênero que ainda estão disseminadas pelos recantos desse País continental, ainda que dispersadas por essa prática de distanciamento entre os governos e as ruas.
Os problemas são graves, as crises são desesperadoras, os salvadores são falsos, mas, onde ainda há a esperança no ser humano também há a certeza que gente organizada tem solução. E a esquerda genuína não deixará o campo livre para que os brasileiros desacreditem nisso.
Ronaldo Martins Botelho,
Jornalista e Mestre em Ciências Sociais
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