segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Passeios interiores

O tempo estava adequado para qualquer coisa, desde que não se necessitasse sair de casa. Eram 8h de um domingo chuvoso. Fim-de-semana, agenda vazia. Liberdade para o que desse e viesse. Mas o que significa essa condição, sem os meios concretos para exercê-la? É como um copo vazio, cujo valor de uso esgota-se na impossibilidade enche-lo. E o que, afinal, são os meios, senão as atitudes ditadas pelos fins? Estes, sim, o que importam. Aquilo que depende apenas do nosso modo de olhar as coisas. Com muito cálculo e remanejo, conseguira pagar todas as contas, mas ficara apenas com o necessário para passar os próximos 15 dias, data do próximo pagamento. Nem mais um tostão para o lazer. Assim estava Tonico naquela manhã de agosto em uma cidade fria do sul do Brasil. Para completar a falta de opção, a chuva misturada com o vento não parava. Bem, o final do programa eleitoral no rádio indicava que o tempo estava passando. Mas seria bom que, de preferência, passasse prazerosamente. Senão, ocorreria novamente como acontecia de praxe, lamentando os próximos dias não ter feito nada de interessante. Foi então que o estranho entusiasmo se transformou em mais uma ideia pervertedora, destas que pintam no ócio imaginativo. Decidiu sacar Neruda, seu autor preferido, recuperando a página de Confesso que Vivi. Sentou na poltrona da sala e começou a imaginar que estivesse na praça tomando sol. Por que não? Imaginar era um exercício agradável. Estava sozinho em sua casa, de modo que estava excluída a possibilidade de ser visto como louco.  Gostou da ideia e começou os procedimentos. Enquanto as pancadas de vento não paravam de bater na porta de seu apartamento, que dava de cara para a sacada, e os relâmpagos anunciavam no céu que a chuva não pararia tão cedo, regulou o ar-condicionado em 25º, vestiu um fino calção, uma camisa branca e um chinelo macio, preparou um copo de suco de laranja e alguns biscoitos de chocolate. Finalmente, montada a infraestrutura, sentou-se na cadeira de balanço da sala e fechou os olhos por alguns instantes, imaginando um céu azul com árvores à sua volta, cheias de pássaros cantando. O clima era ideal em seus pensamentos. Concentrou-se d e uma maneira tal que os seus sentidos já começavam a corresponder à paisagem pintada em seus pensamentos. Até os fios do vento frio que entravam pelas frestas da janela, soavam agora como uma leve brisa, que costuma acompanhar o sol das manhãs da primavera sulista – ainda que se estivesse em final de junho. Nesse verdadeiro êxtase, tomou o primeiro gole de suco, abriu os olhos e o livro. E quando começava a sua leitura matinal, agora em estado de entusiasmo, percebeu que o tempo estava mudando repentinamente. A chuva parara e, em questão de minutos, um discreto sol começava a iluminar a cidade. Não resistiu em abrir a janela, quando percebeu que as nuvens escuras davam lugar a um céu tão azul quanto as águas de um oceano. Olhou para o livro na cadeira e para o céu convidativo, mas foi o canto de um pássaro, que pousava agora no parapeito de sua sacada, que lhe completou a opção. Apressou-se em sair para a rua, pensando apenas no quanto um dia chuvoso pode inspirar e no que poderia ser a vida com mais poesia e imaginação.
Inverno de 2002, em algum canto do sul do Brasil.

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