sábado, 6 de novembro de 2010

Em busca de um palco (Crônica)

Nicanor falava pausadamente, querendo sensibilizar sem demonstrar intencionalidade. Ela ainda não casou de novo, espera por ti. Ninguém toca diretamente no assunto, mas às vezes ela fala espontaneamente, com uma certa naturalidade, sempre com verbos expressados no futuro do presente. “Quando ele retornar. Quando tudo isso acabar. Quando a nossa vida voltar a ser como era”. A menina já completou cinco, deves saber. Está cada vez mais linda. Também ainda fala o teu nome às vezes. Nessas alturas daquela fria conversa, ouviu um suspiro, foi quando notou, através do espelho, uma fina lágrima no rosto de José. A gota escorria em direção aos lábios, deixando uma perceptível mancha na maquiagem do personagem que se construía.

A sala era pequena, mas luxuosa. A tranqüilidade do ambiente separava, por uma porta e aproximadamente uma hora, um outro mundo, onde a imaginação tinha espaço para acontecer, e muita gente pagava para ver um personagem contemplar os seus medos, dúvidas e desejos. Os dois já estavam ali há mais ou menos uma hora e meia. Fazia quatro anos que não se falavam.

Desde que José virou a cabeça e fugiu da pequena Tacaratu, sua terra natal no interior do Pernambuco, para a gigantesca e misteriosa São Paulo, sem deixar endereço, nem mandar notícias – como comentavam amigos e vizinhos – tudo ficou mais difícil para a jovem Gabriela, que se negava a voltar para a casa dos pais, acreditando no retorno do marido. A pequena Clarice, que tinha, então, um aninho, não chegou a tomar plena consciência da imagem paterna, mas era seguidamente lembrada pela mãe. “Quando o teu pai retornar de viagem, ele vai passear contigo todos os fins de semana na pracinha. Vai comprar sorvete para você e te acompanhar na gangorra”, não cansava de repetir Gabriela que, apesar das constantes noites de choro e sono perdido, preservava a esperança e beleza jovial de seus 25. Nunca entendeu a misteriosa fuga do companheiro, que amava, e cuja ausência apenas reforçou essa certeza. Mas teimava em acreditar que haveria uma explicação para tudo. Que logo ele retornaria com argumentos plausíveis, e tudo voltaria ao normal.

"Escute meu irmão, você pode continuar sem falar nada. É o seu direito. Mesmo sem entender as suas razões, não tenho dúvidas de que amava a sua família, e foi por isso que vim de tão longe para te pedir, em nome de duas pessoas, que volte comigo. Parto essa noite, no ônibus das 22h. Acreditando que ainda lhe conheço, comprei uma passagem para você. Deixo aqui o cartão da pensão, onde estou até ás 21h15. Pense, e faça o que o teu coração mandar. Continuarei te considerando sempre, independente da tua decisão", declarou Nicanor, despedindo-se com um apertado abraço no amigo, que parecia um corpo inerte, como que sufocado pela angústia de um grito que não podia sair de suas entranhas. Quando ficou novamente sozinho, José olhou no relógio e viu que faltavam apenas 15min para o espetáculo. Lembranças desfilavam rapidamente em seus pensamentos.

Nunca teve coragem, nem disposição para falar a ninguém sobre o exame médico que decidiu fazer, muito menos o diagnóstico clínico das dores que sentia constantemente no coração, e sobre as quais também poucos sabiam. Cinco anos de vida era a projeção de sua existência, conforme havia lhe revelado o médico, após muita insistência. Foi então que, desesperado e deprimido com a notícia, sem saber se podia, ou tinha o direito de contar a alguém, tomou a decisão e partir para longe e apostar o seu resto de vida em um sonho sempre adiado: o teatro. Com uma força, que não sabia de onde vinha, suportou todas as perdas que o coração sentiu, e as barreiras que a consciência impôs. Coragem ou covardia? Nunca decifrou. Mas, como voltar com uma explicação que justificasse as suas atitudes?  Ah, isso sim era ainda pior.

“O show inicia em 10 minutos”, as palavras atravessaram como uma espada afiada as distantes reflexões de José. Era o grito do diretor, que abriu a porta de supetão, com meio corpo para dentro do camarin.

A platéia aguardava a apresentação do monólogo ‘Saudades de mim’, há três semanas com recorde de bilheteria, tendo conquistado a simpatia quase unânime da crítica paulistana.

"Senhoras e senhores, boa noite. Dentro de três minutos, vocês terão a oportunidade de assistir a mais nova  sensacional revelação do teatro brasileiro. Para quem nunca viu um artista interpretar com viva emoção os mais profundos sentimentos, através de uma reflexão individual sobre o sentido do amor na existência humana, preparem-se. No mais, deixo que o brilho do espetáculo fale por si".

Nesse instante, as luzes se apagam, explodem gritos e assovios e a expectativa impera. Ansioso pro chamar a estrela da noite, o diretor dirige-se ao camarim, abrindo novamente a porta com o tradicional grito de “Pode entrar, José!”.

Surpreendentemente, porém, nota que a sala estava vazia. Na mesa do camarim, um bilhete escrito por mãos visivelmente trêmulas. “A ficção termina e um outro espetáculo recomeça, aquele em que o personagem pode, além de representar, viver o que ama. Volto para onde plantei meus sonhos mais profundos. Desculpe por isso e obrigado por tudo. José”. No palco, o experiente diretor rende-se à perplexidade, sozinho, atônito, diante dos gritos da platéia eufórica, imaginado tudo em torno de apenas uma pergunta: Por quê?

Prólogo: Alguns quilômetros dali, um taxista conduz um estranho passageiro. Há dez anos de ofício, Pedro já havia visto muitas caras estranhas, mas, sem dúvidas, era diferente de tudo o que já conhecera aquele palhaço de maquiagem borrada e semblante sério, que parou-lhe, com respiração ofegante, uma pequena mala, e  deu ordem firme e direta: “Tietê, velocidade máxima. Pago em dobro”.

Nenhum comentário: