quarta-feira, 30 de março de 2011

Há uma história, para muito além da oficial, há ser contada na América Latina

Padre que abençoava voos da morte é denunciado durante missa

O padre alberto Angel Zanchetta, que em 2009 se aposentou como capitão de fragata e capelão da Marinha, é acusado de ter abençoado os voos da morte por meio dos quais presos políticos e desaparecidos eram lançados ao mar durante a última ditadura argentina. No último domingo, Zanchetta foi denunciado publicamente por jovens militantes peronistas e familiares de desaparecidos enquanto rezava missa em uma paróquia de Buenos Aires. Os moradores da região pediram sua remoção imediata da paróquia.

domingo, 27 de março de 2011

Transgênicos - ainda há muitas dúvidas

27 de março de 2003, há exatos oito anos o comércio de soja transgênica é liberado no País.
De lá para cá, o que estamos realmente comendo?

Leia entrevista do engenheiro agrônomo Sebastião Pinheiro sobre o tema aqui. O curioso é que, depois de tão influenciar pelo mundo a necessidade desse tipo de cultivo e de sua segurança alimentar, os EUA podem rever liberalismo transgênico. Surge daí, os orgânicos (ou alimentos cultivados normalmente, sem venenos, nem manipulação genética).

Ocorre que, nesse contexto, de total difusão dos produtos concebidos via mecanismos de produção industrial - com defensivos e manipulação - os orgânicos encareceram.

E quem detém maior poder e recursos para produzi-los hoje em massa? No Brasil há muita área cultivável. Mas sob controle de quem elas estão? Como as multinacionais se apropriaram, direta ou indiretamente, desses espaços? Eis perguntas importantes a serem colocadas na mesa na construção de um modelo agrícola nacional realmente seguro, saudável e popular.

Abaixo, a primeira parte do documentário francês O mundo segundo a Monsanto.


sábado, 26 de março de 2011

Mundo das máquinas

"Na verdade a cidade de Florianópolis nunca foi pensada para as pessoas. Aqui imperam os carros e o “business”. O sistema viário só se preocupa com o transporte individual. O coletivo é ignorado. Todas as mudanças que acontecem visam desafogar as artérias para os veículos particulares. Abundam as lojas de venda de carro e os financiamentos em 60 meses. Segundo o Departamento Estadual de Trânsito, a cada dia, circulam mais 27 novos carros. Em Florianópolis a relação entre população e carro per capita está em 1,9. Em 2010 a frota chegava a 270.463 carros na cidade. Ou seja, há um carro para cada duas pessoas. Isso pode parecer uma loucura, mas é fruto da completa incapacidade da prefeitura em organizar a cidade para que as pessoas possam se mover com qualidade. Tanto que é conhecida como uma das cidades com pior mobilidade urbana do mundo."
Reproduzido de Palavras Insurgentes.

Esssa realidade contempla perfeitamentee pelo menos uma dúzia de capitais brasileiras.
E a maioria das demais só não estão nessa situação pelo baix poder aquisitivo.
Em resumo, na ânsia competitiva pelo conforto, o capitalismo submete a natureza e a seus recursos ao poder das máquinas.
"Criamos a época da produção veloz, mas nos sentimos enclausurados dentro dela" (Chaplin).

segunda-feira, 21 de março de 2011

Vale a pena ser jornalista no Brasil? - Mino Carta

19 de março de 2011 às 17:27h

Pequena reflexão sobre as relações entre profissionais nativos e a diplomacia dos EUA, e sobre quem lhes dá crédito. Por Mino carta. Foto: Reprodução
Como jornalista, recebi o melhor elogio de João Baptista Figueiredo. À beira de um churrasco celebrado em 1988 em companhia de colegas de pijama, o quinto e último ditador pós-golpe, também ele já apeado, gravou um depoimento em que lá pelas tantas fala de mim. Textual: “O Mino é um chato, se pudesse reescreveria os Evangelhos, Geisel o detestava, mas ele não tem rabo preso”.
Figueiredo me comparava a Roberto Marinho e Victor Civita, dos quais não tinha boa opinião: só o procuravam, dizia ele, para pedir favores de alto calibre. Evidente a confusão no confronto: Marinho e Civita são patrões e eu sou um profissional de imprensa. Há hoje em dia quem me pretenda empresário, apresso-me a esclarecer: faltam-me tino e espírito para tanto. Deu-se apenas que, depois de sair da Veja em fevereiro de 1976 ao me demitir para não levar um único escasso tostão do dono da Editora Abril, tive de inventar os meus empregos. De sorte a garantir um salário, até agora indispensável.
Perdoem se me alongo no assunto, mas os leitores, sempre generosos, entenderão ao cabo a sua pertinência. No caso da Carta­Capital deixo claro que nunca vi a cor de um dividendo, o emolumento que costuma premiar os empresários. Não vi porque não houve. Sobra o salário, muito, incrivelmente inferior ao de qualquer diretor de redação da chamada grande imprensa. E nem se fale dos senhores da mídia eletrônica. As redações espelham a situação social do País com alguma fidelidade. Os graúdos ganham mais do que os colegas do mundo pretensamente primeiro, os miúdos ficam a léguas de distância a viver o terror da demissão.
Disso tudo, e razões outras, resulta um jornalismo de péssima qualidade. Quem tiver dúvidas, compare os produtos da nossa imprensa, jornais e revistas, com os similares europeus e alguns americanos. Os quais, aliás, nascem em redações bem menores e infinitamente mais competentes, ancoradas em profissionais que lidam com o vernáculo com desembaraço impensável por aqui, e carregam uma bagagem inatingível nas nossas latitudes de estudo e leituras importantes em lugar de inúteis diplomas. Sem contar que prestam seus serviços a uma mídia devidamente regulamentada por leis tão democráticas quanto inflexíveis.
Não sei se vale a pena acentuar certas diferenças, por mais evidentes, em um país­ que, em níveis sociais elevados, é o Bazil zil zil em vez do Brasil brasileiro da música. Popular, obviamente. Mas a turma de cima se dá ares, dirige pelas ruas como se fossem da sua propriedade e carrega para os restaurantes o vinho conservado em suas adegas climatizadas. E dizer que há poucos anos se encharcavam de uísque antes, durante e depois do jantar. Terrível é que se espraie um segundo time empenhado em seguir-lhes os passos. São estes os leitores da nossa imprensa. Haverá outros, está claro, entre eles os de CartaCapital, mesmo assim a leitura é coisa da minoria, não somos argentinos, muito menos ingleses, que diabo.
O episódio entre o ridículo e o grotesco que aponta em alguns jornalistas (jornalistas?) brasileiros outros tantos advisers da diplomacia dos EUA, revelado nos últimos dias pelo WikiLeaks, é altamente representativo da mediocridade dos atores. O jornalismo nativo e a diplomacia americana. Pergunto aos meus irônicos botões se eu não seria condescendente quando aludo à mediocridade. Não estaríamos diante de um fenômeno que a transcende? Gargalham com gosto, advertem contudo: não se trata de vendilhões da pátria, não caiamos em equívoco tão grosseiro. Trata-se é de sonhadores.
Sonhadores? Que os botões se expliquem. Reproduzo o raciocínio. Não são jornalistas, não se interessam pela verdade factual, pelo exercício do espírito crítico. Entregam-se ao devaneio, a uma ficção onírica, e mandam às favas as regras mais comezinhas da profissão. Se não, vejamos. Ao acaso: segundo um despacho do consulado americano do Rio para Washington, “o importante colunista político da revista Veja, Diogo Mainardi” expõe em sua coluna de uma edição de janeiro do ano passado o desejo de José Serra de ter Marina Silva como vice na chapa anti-Lula, manifestado durante almoço tête-à-tête ocorrido dias antes. E Aécio Neves onde fica? O principal officer sediado no Rio apressa-se a esclarecer em seu despacho que o importante colunista relatara anteriormente os termos de uma conversa com Neves, o qual se dissera “completamente aberto” à possibilidade de concorrer como vice de Serra. Muito antes, em entrevista a CartaCapital, o então governador de Minas havia excluído peremptoriamente esta chance, para negá-la oficialmente, de resto, dia 17 de dezembro de 2009.
Acontece que os diplomatas americanos leem sofregamente a imprensa nativa e não perdem o Jornal Nacional, e confiam na mídia sonhadora do pensamento único. Na lista dos especialistas e peritos em miragens consultados pelos americanos estão nomes ilustres. Merval Pereira, por exemplo. Nove dias depois de Mainardi, insistia na disposição já desmentida de Aécio Neves. William Waack, da TV Globo, e Helio Gurovitz, diretor de redação de Época, foram classificados pela própria embaixada como “os críticos mais duros de Rousseff”. Para Waack, Dilma é “incoerente”. Menos criativo, Gurovitz a definia como “o poste de Lula”. De todo modo o presidente não a elegeria, como se deu com o candidato da senhora Bachelet no Chile.
Não é que representantes de Tio Sam se diferenciem de nossos privilegiados, ao menos na escolha de suas leituras. Uns e outros preferem o devaneio, o sonho à rea­lidade, a mentira à verdade factual. Deste caos mental participa boa parcela de empresários e publicitários, e a eles aludo porque esta é matéria fortemente relacionada com o destino de CartaCapital. Faz tempo surgem em cena senhores que se apresentam como jornalistas e que se aplicam na conta das páginas de publicidade desta revista. Concluem que a contribuição da publicidade “governista” é maior do que a da iniciativa privada. Não é bem assim.
Por que se dedicam a este mínimo esforço (às vezes não exige excessivo saber aritmético) até hoje não entendi. De quando em quando, entre o fígado e a alma formulo uma hipótese, não enobrece esses matemáticos mas não a declino por modéstia: aponta para a nossa invejável qualidade. Recorro, porém, e mais uma vez à verdade factual. Durante o reinado de Fernando Henrique Cardoso fomos esquecidos pela publicidade do seu governo, de certa forma perseguidos, na esperança, quem sabe, de que morrêssemos na praia. Recém-empossado em 2003, Lula me chamou a Brasília dia 15 de janeiro. Somos velhos amigos, desde o final de 1977, e ambos ficamos à vontade quando me perguntou: “Que podemos fazer por CartaCapital?” A esta altura da conversa estava presente também José Dirceu, chefe da Casa Civil. Respondi: “Peço apenas isonomia em relação à publicidade do governo”.
Assim foi, dentro das justas regras de que as nossas páginas são mais baratas que outras. Quem soma as inserções públicas em CartaCapital, se frequentasse a verdade factual teria de verificar o que acontece naquele mesmo instante  nas outras semanais. Quanto ao setor privado, a conclusão é inescapável: inúmeros empresários, inúmeros publicitários, preferem o devaneio, tão bem contado pelos informantes e conselheiros que a nossa mídia fornece aos diplomatas americanos, à prática do jornalismo honesto, incapaz de confundir o wishful thinking com quanto acontece e, como dizia Hannah Arendt, “acontece porque é”. Mas até as nossas autoridades, frequentemente agredidas pela sonhadora mídia nativa, a prestigiam sempre que podem, em uma belíssima demonstração de humildade e caridade cristã.
CartaCapital não apoiou, nos limites dos seus alcances, as candidaturas de Lula em 2002 e 2006, e de Dilma em 2010, por qualquer motivo de identificação ideológica ou interesse material, e sim porque entendia serem as melhores para o Brasil brasileiro. Em outros países, esta definição não somente é de praxe, mas também demanda­ da opinião pública. Neste momento as circunstâncias me levam a perguntar aos meus céticos botões: vale a pena ser jornalista no Brasil? Eles agora se calam.

Mino Carta

Mino Carta é diretor de redação de CartaCapital. Fundou as revistas Quatro Rodas, Veja e CartaCapital. Foi diretor de Redação das revistas Senhor e IstoÉ. Criou a Edição de Esportes do jornal O Estado de S. Paulo, criou e dirigiu o Jornal da Tarde. redacao@cartacapital.com.br

domingo, 20 de março de 2011

Sobre o homem, o dinheiro, a saúde e a vida



"O que mais surpreende é o homem, pois perde a saúde para juntar dinheiro, depois perde o dinheiro para recuperar a saúde. Vive pensando ansiosamente no futuro, de tal forma que acaba por não viver nem o presente, nem o futuro. Vive como se nunca fosse morrer e morre como se nunca tivesse vivido."
Dalai Lama

sexta-feira, 18 de março de 2011

terça-feira, 15 de março de 2011

A arte de perder

"A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a cada dia.
Aceite, austero, A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério: Lugares, nomes, a escala subseqüente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes. A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente. Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda
nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que
pareça (Escreva!) muito sério."

Elizabeth Bishop

sábado, 12 de março de 2011

Quem matou Aparecida (Ferreira Gullar)

Na poesia do irreverente Gullar, um homenagem as mulheres brasileiras, especialmente aquelas mais ignoradas e ingorantes sobre seus direitos de amar e ser feliz.

Quem matou Aparecida

História de uma favelada
que ateou fogo às vestes

Aparecida, esta moça
cuja história vou contar,
não teve glória nem fama
de que se possa falar.
Não teve nome distinto:
criança brincou na lama,
fez-se moça sem ter cama,
nasceu na Praia do Pinto,
morreu no mesmo lugar.

Praia do Pinto é favela
que fica atrás do Leblon.
O povo que mora nela
é tão pobre quanto bom:
cozinha sem ter panela,
namora sem ter janela,
tem por escola a miséria
e a paciência por dom.

No dia que a paciência
do favelado acabar,
que ele ganhar consciência
para se unir e lutar,
seu filho terá comida
e escola para estudar.
Terá água, terá roupa,
terá casa pra morar.
No dia que o favelado
resolver se libertar.

Mas a nossa Aparecida
chegou cedo por demais,
por isso perdeu a vida
que ninguém lhe dará mais.
É sua história esquecida
de poucos meses atrás,
e essa vida perdida
de uma moça sem cartaz
que está aqui pra ser lida
porque nela está contida
a lição que aprenderás.

Já bem cedo Aparecida
trabalhava pra comer:
vendia os bolos que a mãe
fazia pra ela vender;
carregava baldes d'água
para banhar e beber.
Comida pouca e água suja
que até dá raiva dizer.

Da porta de seu barraco,
de zinco e madeira velha,
olhava o mundo dos ricos
com suas casas de telha.
Os blocos de apartamento
quase tocando no céu
dos quais nem em pensamento
um deles seria seu.

Daquele chão de monturo,
via o mundo dividido:
Do lado de cá, escuro,
e do lado de lá, colorido.
À sua volta a pobreza,
a fome, a doença, a morte;
e ali adiante a riqueza
dos que tinham melhor sorte.
Nossa Aparecida achava
que tinha era dado azar
porque ela ignorava
que o mundo pode mudar.

Já conhecia a cidade
da gente limpa e bonita,
meninas de sua idade
de seda e laço de fita.
Gente que anda de carro,
vive em boate e cinema,
que nunca pisou no barro,
que não conhece problema,
que pensa que o Rio é mesmo
Copacabana e Ipanema.

Que pensa ou finge pensar.
Porque se chega à janela,
se dá um giro, vê logo
o casario da favela,
a marca mais evidente
desta sociedade ingrata,
que a terça parte do Rio
mora em barracos de lata.

E assim foi que Aparecida
se tornou uma mocinha.
Falou pra mãe que queria
ganhar uma criancinha.
Já que boneca era caro
e dinheiro ela não tinha,
ter um filho era mais fácil
dela conseguir sozinha.

"Sozinha ninguém consegue!",
disse-lhe a mãe já com medo.
"Tira isso da cabeça,
ter filho não é brinquedo.
Favelada que tem filho
acaba a vida mais cedo".

Não podia Aparecida
entender essa verdade.
Queria ter um bebê
para cuidar com bondade,
para vestir bonitinho
como os que viu na cidade.

Tanto falou no desejo
de ter uma criancinha
que um dia uma lavadeira
que era sua vizinha
prometeu falar na casa
de um tal de dr. Vinhas,
casado com dona Rosa,
que ganhara uma filhinha.

Foi assim que Aparecida
mudou-se para Ipanema.
O ordenado era pouco
mas resolvia o problema.
Deixou a Praia do Pinto
e venceu o seu dilema:
ganhou um bebê bonito
cheirando a talco e alfazema.
Quando saiu com o embrulho
(dois vestidos e um espelho
redondo, de propaganda)
a mãe lhe deu um conselho:
"Veja lá por onde anda.
Cuidado com homem velho
e português de quiranda.
Pra rico é fácil ter filho;
pra pobre, a vida desanda".

Mas Aparecida estava
entregue a sua alegria.
Só pensava na menina
de que ela cuidaria,
a boneca de verdade
que ela enfim ganharia.
E assim passou cantando
aquele primeiro dia.

Foi muito bem recebida
pela patroa e o patrão.
Ganhou um quarto pequeno
e uma cama de colchão.
Quarto escuro, colchão duro,
mas como querer melhor
quem sempre dormiu no chão?

A vida de Aparecida
corria tranquila e bela.
Ainda por cima seu Vinhas
simpatizava com ela,
indagava de sua vida
e das coisas da favela.

Um dia pegou-lhe o braço
e puxou-a para si.
Lhe disse: "Me dá um abraço,
que eu gosto muito de ti".
Largou-a ao ouvir os passos
de alguém que vinha pra ali.

Mas de noite ele voltou.
Deitou-se ao lado dela
e ela não se incomodou.
Passou a mão nos seus peitos,
e Aparecida gostou.
Deitou-se por cima dela
e suas calças tirou.
Aparecida nem lembra
o que depois se passou.
E tanto se repetiu
que ela até se habituou.

Mas lá um dia a patroa
abriu a porta e os pegou.
Já era de manhã cedo,
Vinhas quase desmaiou.
A mulher fez que não viu,
tranuilamente falou:
"Compre-me um litro de leite,
pois o leiteiro atrasou".

Aparecida saiu
sem saber o que fazer.
Quando voltou, no seu quarto
tinha coisa pra se ver:
a patroa já chamara
um guarda para a prender.
"Ela roubou estas jóias,
que nem bem soube esconder" -
disse mentindo a patroa.
Aparecida foi presa
sem nada poder dizer.

Para o SAM foi conduzida
depois de muito apanhar.
Um dia ali esquecida
começou a reparar
que em sua entranha uma vida
começara a despertar.
Quando o guarda da prisão
descobriu-lhe a gravidez,
foi dizer à Direção,
que a retirou do xadrez
para evitar complicação.
"Vá se embora, sua puta,
chega de aporrinhação".

Aparecida voltou
pro barraco da favela.
A mãe estava doente
sem saber notícia dela.
Cuidou da mãe como pôde
e conseguiu se empregar.
Trabalhou até que um dia
numa fila de feijão
perdeu as forças, caiu,
e teve o filho no chão.
Da casa onde trabalhava
logo foi mandada embora.
"Empregada que tem filho
não serve, que filho chora".

Em outras casas bateu
mas de nada adiantou.
Depois de muito vagar,
pra casa da mãe voltou.
Mas o problema da fome
assim não solucionou.
Não teve outra saída:
na prostituição entrou.

Ficava noites inteiras
rodando pelo Leblon
para apanhar rapazinhos
que sempre pagavam algum
e que não tinham o bastante
pra frequentar o bas-fond.

Até que um dia encontrou
um rapaz que gostou dela
que se chamava Simão
e morava na favela.
Decidiram viver juntos
e a vida ficou mais bela.

Bela como pode ser
a vida de um favelado
morando em cima da lama
num barraco esburacado
trabalhando noite e dia
por um mísero ordenado.

Mas Simão e Aparecida
um ao outro se ampararam.
Com as durezas da favela
de há muito se habituaram:
uniram suas duas vidas
e depressa se gostaram.

Ela lavava pra fora
e cuidava do filhinho
que, de mal alimentado,
era magro e doentinho
mas que dela merecia
todo desvelo e carinho.

Simão, que era operário,
trabalhava numa usina.
Gastava sua mocidade
numa soturna oficina
onde o serviço é pesado
e o dia nunca termina.
Mas o amor de Aparecida
viera abrandar-lhe a sina.

Simão ganhava tão pouco
que mal dava pra comer,
menos que o salário mínimo
que está na lei pra inglês ver...
Nem sempre tinha jantar
nem o que dar de beber
ao menino que chorava
sem poder adormecer.

Aparecida e Simão
deitados ali do lado
ouviam o choro do filho
fraquinho e desesperado
que já no berço sentia
o peso cruel e injusto
desse mundo desgraçado.

E eis que um dia Simão
participou de uma greve.
Veio a noite e Aparecida
dele notícia não teve.
Os companheiros disseram
que a policia o deteve.
Ela correu à polícia
mas ali nada obteve.

Voltou chorando pra casa
sem saber o que fazer.
Debruçada na janela
viu o dia amanhecer:
um dia claro mas triste
como se fosse chover.

Sentia-se desemparada
naquela casa vazia.
Por que duravam tão pouco
suas horas de alegria?
Se Simão não mais voltasse
o que é que ela faria?

Esperou que ele voltasse.
Os dias passaram em vão.
O menino já chorava
sem ter alimentação.
Ela já nem escutava
tamanha a sua aflição.

Quase imóvel, dia e noite,
ficou assim na janela
à espera de que Simão
voltasse outra vez pra ela
fazendo o seu coração
sentir que a vida era bela,
por pouco que fosse o pão,
triste que fosse a favela.

Quanto tempo se passara?
Quanto dia se apagou?
Até o menino calara,
até o vento parou.
Aparecida repara
que alguma coisa acabou.

Era uma coisa tão clara
que ela própria se assustou.
Por que calara o menino?
Que mão nova o afagou?
E sobre o corpinho inerte
chorando ela se atirou...

Chamava-se Aparecida
e chorava ali sozinha.
Mal chegara aos 15 anos
a idade que ela tinha.
Chorava o seu filho morto
e a sua vida mesquinha.
Uma criança chorando
sobre outra criancinha.

Fpi assim que Aparecida
sem pensar e sem saber
derramou álcool na roupa
pra logo o fogo acender.
E feito uma tocha humana
foi pela rua a correr
gritando de dor e medo
para adiante morrer.

Acaba aqui a história
dessa moça sem cartaz
que ficaria esquecida
como todas as demais
histórias de gente humilde
que noticiam os jornais.
Pra concluir te pergunto:
Quem matou Aparecida?
Quem foi que armou seu braço
pra dar cabo da vida?
Foi ela que escolheu isso
ou a isso foi conduzida?
Se a vida a conduziu
quem conduziu sua vida?

Por que existem favelas?
Por que há ricos e pobres?
Por que uns moram na lama
e outros vivem como nobres?
Só te pergunto estas coisas
para ver se tu descobres.

Se não descobres te digo
para que possas saber:
o mundo assim dividido
não pode permanecer.
Foi esse mundo que mata
uma criança ao nascer,
que negou à Aparecida
o direito de viver.
Quem ateou fogo às vestes
dessa menina infeliz
foi esse mundo sinistro
que ela nem fez nem quis
- que deve ser destruído
pro povo viver feliz.


Ferreira Gullar

sexta-feira, 11 de março de 2011

Ninguém vira nada, se amplia. Ou se revela

Quando me deparo, já freqüentemente, com pessoas de atitudes agudamente diferenciadas no seu modo de ser – seja reacionariamente, seja liberalmente - se acende em mim a velha tese que alimento, e tem se confirmado seguidamente: as pessoas não mudam, elas se ampliam ou se revelam.

Para testar essa noção, costumo, primeiramente, examinar com atenção o real significado de uma determinada opção ideológica, religiosa ou privada (em termos de projeto de vida), respeitando o sentido real da palavra em questão. A partir disso, passo a associar a idéia decorrente desse conceito a pessoa em questão hoje. Logo, termos como “Comunista”, “Fiel”, “Hippie, “Fraco”, “Neoliberal”, “Vagabundo”, “Bem-sucedido”, “Fracassado”, entre outros nomes (ainda na moda em nossos tempos para rotular e excluir), são problematizados por mim à luz do seu radical significado: aquele ligado ao contexto em que foi primeiramente empregado - sim, porque as palavras, todas, têm uma história, e sou dos que pensam que elas devem ser respeitadas nesse nível.

Aí, sob esse olhar mais dialético, consigo ver o que realmente está por trás de alguém, antes (pré) julgado tal coisa. Logo, concluo: Ela nunca foi aquilo. Ou, diferentemente, o foi sempre, mas já não o é “apenas” aquilo. Se ampliou.

Mudar, por outro lado, acho uma palavra muito forte, em se tratando de ser humano. Não deixamos de ser meninos, meninas, para nos tornarmos homens e mulheres adultos. Passamos a ser “também” isso. E ser adulto ou ser criança também não depende apenas de uma fase etária, mas de uma revelação. Nesse caso, ocorrem as duas coisas. As pessoas se ampliam e se revelam.

Essa é a impressão que tenho alimentado sobre os seres humanos. Em geral, não me lembro de ter se enganado por esse olhar.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Carta aberta para Sandy

"Vou te dar um conselho… de mulher pra mulher: você não precisa ser santa, nem puta. Você pode ser livre."
Confira o texto, na íntegra, no blog da Marcha Mundial das Mulheres - RS.
 O texto é de Tica Moreno, cientista social vinculada à SOF. .

Lançamento do documentário Ciclovida


Lançado no dia 2 de Março, em Fortaleza, o premiado documentário Ciclovida (ou Lifecycle) produzido pelos irmãos americanos Matt Feinstein e Loren Feinstein com colaborações de ativistas brasileiros. Em Ciclovida você conhecerá a história de um grupo de pequenos agricultores sem-terra cearenses que atravessou o continente da América do Sul pedalando por mais de oito mil quilômetros, para incentivar o plantio de sementes naturais.

Os viajantes documentaram a trajetória deste grupo, a discussão sobre a dominação dos agrocombustíveis no campo e o deslocamento de milhões de pequenos agricultores e comunidades indígenas.O documentário mostra que cultivos e matas nativas estão sendo substituídos por desertos verdes de monoculturas transgênicas onde, nem planta ou animal, podem sobreviver aos agrotóxicos. Segundo estudo divulgado pelo Serviço Internacional para a Agrobiotecnologia, o Brasil é responsável por 12% das lavouras geneticamente modificadas no mundo.

Ciclovida foi escolhido o melhor documentário na categoria conservação do Green Screen Environmental Festival Film/2010 e selecionado para o Blue Planet Film Festival em Los Angeles, EUA e Byron Bay Film Festival na Austrália.

Reproduzido do Midia Independente

sábado, 5 de março de 2011

Sobre o tempo, a ilusão e a vida real

Retornando ao nosso espaço cosmológico, com breve atraso, quero me reportar, mais uma vez ao tempo, associando-lhe, agora à ilusão e a vida real, como possibilidades de sedução, por meio da tecnologia. Nesse caso, me refiro, como exemplo potencialíssimo, a televisão, vista por dentro - a garganta desse monstro. De fora, uma pequena tela pode seduzir milhões por artifícios de som e imagem, muito bem produzidos. Mas, ao avesso, uma equipe, comumente pequena, atua orquestradamente, para garantir a a boa qualidade da veiculação. A perfeição da imagem e som na tela se traduz, no avesso, em energia total, humana e maquínica. Câmeras de porte, fios desordenados, luzes intensas, olhares fixos e muito stress são a tônica no pequeno espaço de um estúdio de TV. Ali, se cria, magistralmente, e cada vez mais, teatralmente, o alimento simbólico, progressiamente básico, da raça humana. Tudo é rápido e exato. A falha de um segundo pode fazer diferença no produto. O improviso, porém, em nossos tempos, se converteu em parte do próprio produto. A metaliguagem é um recurso forte e predominante nas mãos dos apresentadores hábeis, o que não quer dizer, talentosos. Voltaremos ao tema futuramente.