sábado, 18 de junho de 2011

Caldinhos de feijão

Seu Odair era divorciado e não tinha filhos, que ele soubesse, ou que quisesse. Gostava muito de feijão preto, mas não qualquer feijão. Tinha que ser feito com arte, maestria. Bem temperado e cozido. O que costuma se dizer “no ponto”. Dona Maria, a empregada, sabia disso. E caprichava. Ao chegar do trabalho, pelas 18h, já sentia o cheirinho do feijão sendo preparado, sempre novo. Jantava cedo. Eram três pratos de caldo de feijão. Só isso, e nada mais. Volta e meia, porém, ao entrar em casa, sentia um cheiro diferente. E sempre quando isso ocorria, perguntava à dona Maria – Acabou de novo o feijão preto? – ao que ela respondia – Sim, seu Odair, teve visitas três vezes nesse mês, lembra? E no supermercado só há feijão vermelho. E quando isso ocorria, ele mudava a fisionomia. “Como, vermelho?”. Não pode ser. Volto já. E, como sempre, saia pelo bairro atrás do feijão preto. Dessa vez, entrou em armazéns, nada; passou dois supermercados abertos ainda, nada; chegou a ir até em um posto de gasolina. E nada do feijão preto. De repente, desconsolado (já eram 18h40), cansado e há 2 km de casa, viu há uns 30m um garoto com uma sacola pela metade, caminhando pacientemente. Correu, alcançou o menino, que devia ter por uns 6 anos, e perguntou: "Você tem feijão aí?". Desconfiado, o menino disse, sim, é para a minha mãe fazer a janta. “Quando você quer por esse feijão?”, indagou Odair, firme. O garoto olhou e respondeu com mais firmeza ainda: “Não, senhor, esse feijão é para nossa janta, não vendo por preço nenhum”. Insistiu. E a negativa continuou. Então, vendo a condição intrasigente daquela criatura, aliada a a fome que já se avizinhava (a empregada já havia ligado três vezes ao celular) uma raiva súbita tomou de si. Pensou um pouco e tomou uma decisão drástica.  Olhando para todos os lados, a rua estava deserta, e as casas já fechadas pela escuridão cedinha do inverno. Ainda disfarçando querer dialogar com o garoto, Odair pegou subitamente o saco de feijão do garoto e saiu correndo. Cego, querendo apenas chegar em casa e entregar a Dona Maria para cozinhar, ignorou os gritos de choro que ficou  para trás. Ao chegar, ainda ofegante (e meio preocupado pelas possíveis conseqüências do que fez), entregou à Dona Maria. Esta, olhou com mais estranheza que a de costume, mas preparou o Feijão, dessa vez de modo meio improvisado, e pôs a cozinhar. Ao servir, Odair estava salivando. Após cerca de 40 minutos colocou o prato na frente do esfomeado. E ainda parou um pouco assistindo como este comia com gosto. Observava ele com um misto de pena, rancor e perplexidade. Tendo cumprido todas as tarefas, ela pediu licença e anunciou que ia embora. O patrão consentiu, sem tirar os olhos de seu caldinho. Dona Maria, que já tinha 47, arrumou-se lentamente em seu quartinho, despediu-se de Odair (ainda centrado em seu segundo prato de caldinho), e saiu. Em 10 min, como rotineiramente fazia – hoje 2h hora mais tarde – estava na parada, esperando o ônibus. Lotado. Esperou pacientemente, por mais 40 minutos. Ao chegar em casa, na vila São Cristóvão, já era noite adiantada. Desceu a ladeira da rua dos Casebres, dobrou à esquerda e chegou a sua residência. Viu de longe todas luzes zcesas ainda. Entrando em casa, a TV da sala estava ligada, ainda. E no sofá, Pedro – seu filho de 12 – dormia no sofá da sala, enrolado ao cobertor e com Mimosa, sua gata, deitada por cima dele. Olhou  a pia, louça suja de leite, e já se atacou. Com um beijo carinhoso com cheiro de ônibus e desodorante vencido o garoto, perguntando – “Por que comeu mingau de novo, deixei a janta pronta na geladeira!!!?”. Ele subiu os olhos para a mãe e ficou em silêncio. “Dona Maria nem esperou resposta. Foi para a cozinha, sem sequer trocar de roupa, pôs o avental, e pacientemente, se colocou a fazer feijão, arroz, carne e salada nova. A essas alturas, passava das 21h. Jantaram pelas 22h30. Após isso, satisfeitos, Pedro, novamente, como fazia toda noite, perguntou a mãe. “E o pai, vai voltar daquela viagem quando, mãe? Você disse que seria quando eu fizesse cinco anos!!! – cobrou outra vez. E dona Maria, como de costume, em uma voz de amargura, tédio,  e cansaço, respondeu de novo, olhando para o prato de comida - Não sei filho, acho que a viajem foi mais longa. Acho que por esse ano, talvez. Agora pegue o feijão da bolsa e ponha na despensa. O garoto abriu a bolsa da mãe, tirou o alimento e levou até uma portinha de uma sala ao lado da cozinha. Abriu a porta, subiu em uma escadinha e juntou o quilo à uma das pilhas altas, que acumulavam dezenas de sacos de feijão preto, alguns de marcas não mais existentes, outros, encarunchados pelo passar dos anos. "Eu nunca entendi esse monte de comida estragada, desde que nasci", disparou, como de costume o menino. E dona Maria, pacientemente, reagiu como de sempre: "Por que um dia, quando teu pai voltar, eu quero que ele veja quantos caldinhos ele perdeu de comer contigo".

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