terça-feira, 30 de agosto de 2011

Abecedário Cosmonicante – Fome / Fatalidade das Injustiças / Falta de amor

Ocorreu que, há milênios, em um certo Paraíso – que não era o de Adão e Eva – havia trabalho em comunidade e valores nobres. Tudo que era produzido ali se destinava à subsistência do coletivo; ninguém nada guardava, mas todos tinham o que precisavam. Não haviam serpentes provocadoras, pois estas com viviam em harmonia com os humanos. Senhores também era coisa estranha, pois a autonomia era decorrente de uma consciência do vínculo de cada um à totalidade, não à autoridade. Abusos, desperdícios também inexistiam ali e nada  de sovinice ou egoísmo. Cooperar, partilhar e sorrir com a felicidade alheia orientavam a vida naquele pedaço de mundo. Mas um dia, alguém teve a idéia de cercar um pedaço de terra e dizer que aquilo só a si pertencia. No segmento, passou a acumular sua produção e não repartir. Era a propriedade particular. Não demorou para que o vizinho visse aquilo e achasse uma boa idéia; e, logo, outros copiaram. Instaurava-se, então, a ganância de possuir o que não se precisava e o verbo consumo surgiu nesse caldo de cultura. O povoado cresceu desigualmente, e dessa forma, se fragmentou em outros, que geraram novas populações, contaminadas por esse vírus. Como a terra, o ar, a água e a vegetação tinha limites, a escassez surgiu como problema. As pessoas tinham pressa de ter e guardar e esqueciam cada vez mais do passado e do que o outro significou um dia. E no meio da corrida de todos para a morte, se anteciparam os males da guerra, da dor e da fome. A guerra assombra a todos diariamente e se transformou também na labuta diária pela sobrevivência da maior parte da humanidade; a dor se tornou sistêmica pelo modo de vida egoísta que as coletividades humanas são vitimas e vitimadas por seus governantes, e a fome passou a ser o retrato mais fiel da falência da forma como as civilizações modernas se organizam para viver. Todavia, ao lado da fome de pão a gerou-se também na humanidade outras fomes. Mais do que sensações, são forças que tem contribuído para semear um possível reencontro dos seres humanos com a essência de sua existência – a natureza, a simplicidade e o calor do próximo. Silenciosamente, assim, vai cercando o mundo também as fomes de vida, de sorrisos e de abraços. Convertidas em ações, tem se tornado poderes gigantescos para saciar os corpos, as almas e as mentes de todos – um remédio a cada dia mais urgente para as sociedades doentes; uma herança generosa para as gerações vindouras, enfim, o paraíso terrestre à imagem e à semelhança da liberdade – sem perfeição, culpa ou julgadores.

"Neste nosso ensaio de natureza ecológica tentaremos, pois, analisar os hábitos alimentares dos diferentes grupos humanos, ligados a determinadas áreas geográficas, procurando, de um lado, descobrir as causas naturais e as causas sociais que condicionaram o seu tipo de alimentação, com suas falhas e defeitos característicos, e, de outro lado, procurando verificar até onde esses defeitos influenciam a estrutura econômico-social dos diferentes grupos estudados. Assim fazendo, acreditamos poder trazer alguma luz explicativa a inúmeros fenômenos de natureza social até hoje mal compreendidos por não terem sido levados na devida conta os seus fundamentos biológicos".
CASTRO, Josué de. Geografia da Fome. São Paulo: Civilização Brasileira, 2001. (1ª edição de 1946).


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