quinta-feira, 26 de julho de 2012

Abecedário Cosmonicante – Morte /Mentira como opção de Vida / Medo como ideologia


Ilustração:  http://www.thaiscandido.com/tag/thais

Um dia João acordou com uma sensação estranha, suando frio. Ao olhar para cama de onde recém saiu, estremeceu. Seu corpo ainda permanecia ali, deitado ao lado da esposa. Descobriu, então, que estava em outro plano. Era um espírito. Ignorando o suposto desespero que sua falta fosse causar, resolveu sair para fazer o que sempre quis, e que imaginava agora poder: voar. Em um impulso, atravessou o telhado e saiu pelo céu. Voou por cima de sua rua, de seu bairro, de seu trabalho; tudo o que queria sempre, mas nunca teve coragem de tentar. Por horas, por dias e por meses sobrevoou mares, planaltos, desertos e planícies. Sem fome ou qualquer outra necessidade humana. Viu o Cristo Redentor Pequeno, avistou o Vale Sagrado dos Incas, passou ao lado da Estátua da Liberdade, atravessou o Oceano e conheceu terras e mares da Ásia, da África, do Oriente, da Europa e da Oceania. Saciado, sem mais ter imaginação por onde ir, mas sem estar cansado, pousou em uma montanha da Cordilheira do Himalaia e se deu conta que também não tinha prazer nesses lugares por onde passava. Tão pouco sentia saudade da sua vida em família, do qual sempre chamava de inferno. Sem relações com humano algum, simplesmente nada sentia, nada compartilhava e nada o engrandecia. E assim, sem rumo e sentido, em um outro impulso quase mecânico, voltou para seu bairro e rondar diariamente sua velha Casa, observando seus familiares e outros conviventes e procurando entender quem era, coisa que nunca tentou fazer em Vida. Descobriu, então, que estava condenado a uma morte, mesmo morto. E não podia sequer desejar voltar, porque desejo não tinha mais. Em suma, sua vida e sua morte transformaram-se na mesma coisa: uma eterna liberdade de não sentir, não lembrar e não ser. Simplesmente um Inferno. Mas em certa manhã de Primavera, um sol esplendoroso nasceu e refletiu sua face insensível e deu-lhe um lapso de consciência. Um milésimo de luz, mas o suficiente para fazer brotar dentro de sí um tênue desejo. Nele concentrou-se com a mais íntima sede que tinha acumulado no longo tempo, que nem sabia mensurar. E explodiu essa ânsia em um grito longo e estridente, sintetizado apenas pela letra A. Descobriu-se então, acordado e consciente, novamente ao lado de sua esposa. Esta, assustada, disse-lhe que ele tinha tido um pesadelo. Mas que tudo havia passado. Não fora nada. E que poderia continuar dormindo. E no outro dia, acordou no mesmo horário e sua vida prosseguiu secamente tranquila. Sedento de fugir de tudo para se reencontrar com si mesmo, mas sem coragem ou atitude para mudar qualquer coisa. Então se convenceu que estar morto pode não fazer diferença nenhuma par uma vida de morte.

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