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Ilustração: http://www.thaiscandido.com/tag/thais |
Um dia João acordou com uma sensação estranha, suando frio.
Ao olhar para cama de onde recém saiu, estremeceu. Seu corpo ainda permanecia
ali, deitado ao lado da esposa. Descobriu, então, que estava em outro plano.
Era um espírito. Ignorando o suposto desespero que sua falta fosse causar,
resolveu sair para fazer o que sempre quis, e que imaginava agora poder: voar.
Em um impulso, atravessou o telhado e saiu pelo céu. Voou por cima de sua rua, de
seu bairro, de seu trabalho; tudo o que queria sempre, mas nunca teve coragem
de tentar. Por horas, por dias e por meses sobrevoou mares, planaltos, desertos
e planícies. Sem fome ou qualquer outra necessidade humana. Viu o Cristo
Redentor Pequeno, avistou o Vale Sagrado dos Incas, passou ao lado da Estátua
da Liberdade, atravessou o Oceano e conheceu terras e mares da Ásia, da África,
do Oriente, da Europa e da Oceania. Saciado, sem mais ter imaginação por onde
ir, mas sem estar cansado, pousou em uma montanha da Cordilheira do Himalaia e
se deu conta que também não tinha prazer nesses lugares por onde passava. Tão pouco
sentia saudade da sua vida em família, do qual sempre chamava de inferno. Sem
relações com humano algum, simplesmente nada sentia, nada compartilhava e nada
o engrandecia. E assim, sem rumo e sentido, em um outro impulso quase mecânico,
voltou para seu bairro e rondar diariamente sua velha Casa, observando seus familiares
e outros conviventes e procurando entender quem era, coisa que nunca tentou
fazer em Vida. Descobriu, então, que estava condenado a uma morte, mesmo morto.
E não podia sequer desejar voltar, porque desejo não tinha mais. Em suma, sua
vida e sua morte transformaram-se na mesma coisa: uma eterna liberdade de não
sentir, não lembrar e não ser. Simplesmente um Inferno. Mas em certa manhã de
Primavera, um sol esplendoroso nasceu e refletiu sua face insensível e deu-lhe
um lapso de consciência. Um milésimo de luz, mas o suficiente para fazer brotar
dentro de sí um tênue desejo. Nele concentrou-se com a mais íntima sede que
tinha acumulado no longo tempo, que nem sabia mensurar. E explodiu essa ânsia
em um grito longo e estridente, sintetizado apenas pela letra A. Descobriu-se
então, acordado e consciente, novamente ao lado de sua esposa. Esta, assustada,
disse-lhe que ele tinha tido um pesadelo. Mas que tudo havia passado. Não fora
nada. E que poderia continuar dormindo. E no outro dia, acordou no mesmo
horário e sua vida prosseguiu secamente tranquila. Sedento de fugir de tudo
para se reencontrar com si mesmo, mas sem coragem ou atitude para mudar
qualquer coisa. Então se convenceu que estar morto pode não fazer diferença nenhuma
par uma vida de morte.
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