Ainda sobre as possibilidades que me ocorrem em torno da ideia de transporte e mobilidade, seja no sentido literal, seja na órbita metafórica, está a das imagens de outros tempos,
em outras palavras, a memória. Essa é uma questão valiosa e cara àquelas gerações que outrora sentiram na pele o peso de governos e sociedades repressivas, e que pagaram por estarem a frente de seu tempo. E daí, me refiro, obviamente aos que viveram isso a partir de uma consciência de mudança então necessária.
Lembrar tem a ver com recuperar o sentido de uma vivência, uma experiência em um tempo específico, que marca um pedaço de nossa história. Quando esta história individual, que tem a ver com um olhar e um sentimento pessoal, se vincula ao plano coletivo, passa a interessar socialmente. E quando essa experiência de convívio entre uma comunidade, de que natureza for, é marcada por um drama, temos aí um vínculo coletivo que pode contribuir para a revelação de um momento histórico e, mais do que isso, impulsionar o interesse pela recuperação e preservação dessa memória.
Hoje, retomar a reconstrução desse imaginário é um desafio que muitos tomaram para si, dentro de suas respectivas artes e discursos. Os protestos que se registram pelo mundo e o Brasil tem a ver com essa reconstrução, a partir de uma influência que não se perdeu, mas se dispersou pelo capitalismo. Os jovens (sempre no sentido espiritual do termo) parecem estar querendo também recuperar isso, à sua maneira, meios e alcance.
Se sabe bem que a história não é estanque, e entre as frestas do discurso oficial, a geração de hoje herda uma influência de seus ascendentes sobre os desmandos políticos de outrora. Somando isso à característica imanentemente mobilizadora dos jovens e as demandas sociais ainda vigentes em um campo tão carente para esse segmento, como o transporte e mobilidade, temos o clima ideal para esse senários se construir.
Onde vai dar essa situação é uma dúvida geral, mas é fato que ela já se integra a história brasileira como mais um registro que nega a noção de que o povo brasileiro é acomodado politicamente Mérito dos mais jovens, mais uma vez.
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- Tendo também a crer que a esquerda autêntica desse País só tende a perder se não tomar a dianteira desse processo de manifestações, que mobiliza dezenas de milhares na maioria das capitais.
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* Esta entrevista foi concedida pelo filósofo em outro contexto, por ocasião da onda de esculacho de ex-ditadores, no entanto, dada a sua profundidade, se ajusta muito bem ao fenômeno vigente no País.
Safatle: juventude perdeu o medo do capitalismo
em outras palavras, a memória. Essa é uma questão valiosa e cara àquelas gerações que outrora sentiram na pele o peso de governos e sociedades repressivas, e que pagaram por estarem a frente de seu tempo. E daí, me refiro, obviamente aos que viveram isso a partir de uma consciência de mudança então necessária.
Lembrar tem a ver com recuperar o sentido de uma vivência, uma experiência em um tempo específico, que marca um pedaço de nossa história. Quando esta história individual, que tem a ver com um olhar e um sentimento pessoal, se vincula ao plano coletivo, passa a interessar socialmente. E quando essa experiência de convívio entre uma comunidade, de que natureza for, é marcada por um drama, temos aí um vínculo coletivo que pode contribuir para a revelação de um momento histórico e, mais do que isso, impulsionar o interesse pela recuperação e preservação dessa memória.
Hoje, retomar a reconstrução desse imaginário é um desafio que muitos tomaram para si, dentro de suas respectivas artes e discursos. Os protestos que se registram pelo mundo e o Brasil tem a ver com essa reconstrução, a partir de uma influência que não se perdeu, mas se dispersou pelo capitalismo. Os jovens (sempre no sentido espiritual do termo) parecem estar querendo também recuperar isso, à sua maneira, meios e alcance.
Se sabe bem que a história não é estanque, e entre as frestas do discurso oficial, a geração de hoje herda uma influência de seus ascendentes sobre os desmandos políticos de outrora. Somando isso à característica imanentemente mobilizadora dos jovens e as demandas sociais ainda vigentes em um campo tão carente para esse segmento, como o transporte e mobilidade, temos o clima ideal para esse senários se construir.
Onde vai dar essa situação é uma dúvida geral, mas é fato que ela já se integra a história brasileira como mais um registro que nega a noção de que o povo brasileiro é acomodado politicamente Mérito dos mais jovens, mais uma vez.
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- Tendo também a crer que a esquerda autêntica desse País só tende a perder se não tomar a dianteira desse processo de manifestações, que mobiliza dezenas de milhares na maioria das capitais.
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Articulação Nacional de Agroecologia - ANA |
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Imagem: Perfil Capinaremos (Face) |
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* Esta entrevista foi concedida pelo filósofo em outro contexto, por ocasião da onda de esculacho de ex-ditadores, no entanto, dada a sua profundidade, se ajusta muito bem ao fenômeno vigente no País.
Safatle: juventude perdeu o medo do capitalismo
Reproduzido de Outras Palavras
POR VLADIMIR SAFATLE
– ON 03/07/2012
Filósofo contesta mitos sobre “geração despolitizada”,
propõe intensificar choque de valores e sugere que é preciso hackear
instituições conservadoras
Entrevista a Beatriz Macruz, Guilherme Zocchio e Rute Pina*
| Imagem Racalavaca (flickr)
Que caracteriza o comportamento da geração que, ao chegar à
faixa dos vinte anos, começa a sondar seus papéis políticos? Por que ela não
adere a hábitos valorizados no passado, como o engajamento num partido ou a
leitura de um jornal diário? Como expressa seus desejos de transformação, que
parecem desdobrar-se em múltiplas causas e campanhas, às vezes fragmentadas?
Que atitudes assumirá, no futuro próximo?
O filósofo Vladimir Safatle é um dos que têm dedicado parte
de seu tempo a refletir sobre estas questões. Conhecido de muitos pelas colunas
que publica em “Carta Capital” e “Folha de S.Paulo”, ele é, muito mais que
isso, um estudioso profundo da herança (e presença…) da ditadura brasileira; e
um pensador que, à maneira de Slavoj Zizek, procura articular marxismo renovado
com teoria psicanalítica.
Suas reflexões têm produzido interpretações instigantes
sobre a nova geração. Ele rechaça, é claro, os pontos de vista superficiais,
segundo os quais o fato de não haver “povo saindo às ruas” indicaria uma fase
de despolitização. É preciso ir mais fundo, examinar os valores que mobilizam e
os que já não encantam; a partir deles é que será possível fazer previsões de
longo prazo.
Safatle anima-se, quando se dedica a esta sondagem. Ele
destaca que aspirações como ascender socialmente, ser “bem-sucedido” segundo as
regras e critérios do sistema, “fazer curso de publicidade ou entrar no
departamento de marketing” já não cativam. Há sinais de desconforto social.
Busca-se outros encantos e prazeres: talvez, participar em redes de colaboração,
contribuir para uma distribuição menos desigual das riquezas produzidas por
todos, construir novas relações entre o ser humano e a natureza.
Mais: segundo o filósofo, já é possível vislumbrar o momento
em que desaparecerá a cultura do medo disseminada pelo capitalismo após a queda
do (mal-)chamado “socialismo real”. Está em xeque, diz ele, a ideia de que “se
quisermos grandes mudanças, provocaremos catástrofes” e “só estaremos seguros
no presente – por mais que o detestemos e o julguemos insuportável”…
É natural, diz Safatle, que a nova geração busque
organizar-se de forma não-tradicional. “Os grandes partidos já não têm força
alguma para mobilizar as pessoas. E os pequenos, cobram caro pela mobilização:
um tipo de adesão que boa parte dos jovens não está disposta a dar, pelas
melhores razões. Eles não querem virar instrumentos para uma lógica
partidária”.
À falta de instrumentos eficazes para expressar vontades
coletivas, seria o caso de optar exclusivamente pela micropolítica, ou pela
ação à margem das instituições? Safatle pensa que não. Ele rejeita fórmulas
como a de John Holloway, que propõe uma esquerda totalmente afastada do Estado.
Alfineta: “se tal postura prevalecer, os donos do poder irão atrapalhar todas
as nossas tentativas de mudar o mundo: não conseguiremos fazer nada”.
Mas propõe-se a sondar saídas. “Há algo no meio do caminho
[entre as lutas e as instituições], que você opera pressionando de fora (…) O
Estado, os partidos e o parlamento não vão desaparecer. No entanto, você pode operar
as estruturas políticas em outras chaves. Forçar a democracia plebiscitária,
esvaziar atribuições do parlamento, ativar processos de democracia direta”.
Operar o que outros pensadores chamam de “hackeamento das instituições”.
Safatle falou sobre todos estes temas numa longa e preciosa
entrevista, feita por três estudantes de jornalismo da PUC – São Paulo. “Outras
Palavras” tem a satisfação de publicá-la a seguir (A.M.)
Você consegue imaginar por que é a geração da juventude de
hoje, e não a que viveu ou ainda pegou o resto da ditadura, que está promovendo
os esculachos contra agentes do regime militar?
Safatle: Porque esta é uma das gerações mais politizadas que
tivemos nos últimos trinta anos. Contrariamente ao que algumas pessoas querem
nos fazer acreditar, não vivemos num processo irreversível de despolitização
juvenil. Acredito exatamente no contrário. Acho que a geração que hoje tem
vinte, vinte e poucos anos, é muito mais politizada do que a minha, de pessoas
que hoje têm quase quarenta. A minha era de pessoas que tinham como maiores
preocupações ascender socialmente no mercado, fazer curso de publicidade,
entrar no departamento de marketing… As preocupações políticas eram nulas.
Existia todo um discurso de que as ideologias haviam terminado, havíamos
chegado ao fim da história e não havia outra forma de vida possível, a não ser
a institucionalizada pelas sociedades capitalistas avançadas.
A atual, é uma geração que vive a experiência da crise
social, de uma crise econômica mundial (mesmo que o Brasil seja um caso à
parte). Há um esgotamento da confiança na democracia parlamentar, a ascensão da
extrema direita, o retorno do racismo e da xenofobia: são questões de profunda
natureza política. É muito normal que uma parcela de jovens, no Brasil,
volte-se para o que resta da ditadura, seu legado, a impossibilidade de saber
que há um acerto de contas com os crimes do passado; e que faça mobilizações
como as que começamos a enxergar.
Isso também demonstra algo interessante: as sociedades nunca
esquecem. Até hoje, fala-se no genocídio armênio, há mais de cem anos. As
experiências das ditaduras podem ser simbolizadas, quando você encontra uma
inscrição simbólica adequada para este tipo de experiência. Como isso não
existiu no Brasil, dá-se um fenômeno descrito por Lacan: o que é expulso do
simbólico, retorna no real, e de forma violenta. Como nunca tivemos uma
inscrição simbólica da violência da ditadura, ela volta agora sob a forma do
desprezo, que várias parcelas da juventude têm a figuras que cometeram crimes
contra a humanidade. Estamos falando do uso do aparato do Estado, da tortura,
assassinato, estupros, ocultações de cadáver e coisas desta natureza.
Mas esta manifestação civil não chega em uma instância
oficial do Estado. Você acha que ela também pode contribuir para que surja um
debate sobre o tema?
Safatle: Acho que demonstra claramente a existência de um
desconforto social – e é o primeiro passo. O argumento de quem quer esquecer a
qualquer custo é que a sociedade já se pacificou e reconciliou, não haveria
nenhuma razão de o Estado intervir em um processo resolvido. Essas
manifestações demonstram que tudo isso é falso, uma mentira, a reconciliação
foi extorquida. A própria Lei da Anistia é um exemplo claríssimo: foi votada só
por membros do partido do governo. A oposição não se reconhecia de no projeto.
Que tipo de acerto é esse? Conseguiram extorquir a reconciliação, e querem
fazer passar a ideia que ela resultou de ampla negociação por debate. Sem
contar que as instâncias de justiça de transição, no mundo inteiro, são
completamente contrárias à de uma anistia autoconcedida. Os militares
concederam anistia para si mesmos. Isso é, em qualquer situação, uma aberração jurídica.
Você acha que o fato de isso aparecer no momento que o
estado brasileiro está se organizando para instaurar uma Comissão da Verdade
revela um desconforto?
Safatle: É uma maneira de pressionar o debate, tentar
impedir que a Comissão da Verdade seja uma farsa, como tudo indica que pode
ocorrer. É uma comissão esvaziada, tem apenas sete membros. Vai operar sem
poder de mandar material para a Justiça, pois, a princípio, sua função é
descobrir o que realmente aconteceu. Essa é uma questão importantíssima: não
sabemos o que aconteceu. “Existem quatrocentos e poucos mortos”. Quem disse que
foram quatrocentos e poucos? Isso foi o que a gente conseguiu descobrir.
Num processo de Comissão da Verdade, os crimes vão
aparecendo. Quem nos garante que não aconteceu no Brasil algo como na
Argentina: sequestro de crianças, essa brutalidade que é, para mim, o pior dos
crimes. Entrega-se os filhos dos torturados para os torturadores. Corta-se a
possibilidade de memória da dor. Esse lado maquiavélico da ditadura argentina
coincide com a pior experiência do nazismo. Primo Levi dizia que a pior frase
que ouvira, quando estava no campo de concentração, era a de um oficial
nazista: “tudo o que a gente fez é tão inacreditável, que ninguém vai ouvir ou
acreditar no que você disser. E a gente vai apagar todos os rastros”.
Você percebe uma mudança na forma, na estética dos
esculachos para os movimentos na época da ditadura?
Safatle: Com certeza. Você tem a identificação clara de um
indivíduo e uma pressão, um movimento claro de desprezo. É um recado: “você
pode conseguir segurar algumas coisas na imprensa e escapar de tudo, menos do o
desprezo social”. É completamente distinto das manifestações que ocorreram no
período militar, de luta contra um aparato repressivo. Temos agora consciência
de como o reconhecimento social é central na vida política. Retira-se o
reconhecimento social ao dizer: “Você não pode ser um cidadão de plenos
direitos. Você é um criminoso”.
Você enxerga uma relação entre a mudança de ativismo no
Brasil e o movimento Occupy, que propõe uma nova forma de se manifestar?
Safatle: Há algo em comum: todos estes movimentos são feitos
à margem de partidos. As estruturas partidárias – pelo menos as grandes – não
têm mais força alguma parra mobilizar as pessoas. E os pequenos partidos cobram
caro pela mobilização: um tipo de adesão que acredito que boa parte dos jovens
não está disposta a dar, pelas melhores razões. Eles não querem virar
instrumentos para uma lógica partidária. Essas mobilizações se fazem em torno de
temas: você se organiza para certos objetivos, cria estruturas ou fóruns
ligados a eles; depois, eles se dissolvem. É bem provável que isso seja cada
vez mais utilizado.
O Occupy forneceu um modelo para este tipo de processo. Mas…
o que eles conseguiram? Francamente, não é esta a questão. O ponto de vista por
trás de tal pergunta é muito rasteiro. “ – Deu um resultado logo em seguida? –
Não. – Então, não deu resultado algum”.
Não faz sentido: às vezes os resultados precisam de anos. Um
primeiro movimento produz um desdobramento aqui, outro ali… Lá na frente, anos
depois, você vai enxergar resultados mais concretos. Essa visão de ato e
reflexo, bate aqui e vê se acontece alguma coisa ali, é a antipolítica por
excelência. Acho que os movimentos foram muito bem-sucedidos. Eles tensionaram
um acordo que parecia intocável, forneceram o modelo de um processo de
mobilização e isso não terminou.
No Chile há, até hoje, grandes manifestações sobre a
educação, 400 mil pessoas nas ruas contra o governo, por uma escola pública de
qualidade. O processo é mesmo lento, ninguém ache que vai conseguir modificar o
tabuleiro do xadrez do debate político de um dia para a noite, mas toda grande caminhada
começa com um passo – e ele foi dado.
Penso numa frase de Deleuze, segundo a qual os jovens
necessitam muito ser motivados. Nossa geração pede isso. Você não acha que
falta uma noção maior do que tudo isso representa?
Safatle: Isso é muito normal, porque tivemos um esgotamento
das grandes explicações. Não porque estivessem completamente erradas, mas
estavam parcialmente erradas. Não deram conta de uma série de processos
ocorridos nos últimos vinte, trinta anos. É normal que você precise reconstruí-las
agora, em novas bases. Aquilo que um dia Jean-François Lyotard chamou das
grandes metanarrativas. Tem um lado certo e um errado, da crítica que fazia.
Ele disse que as grandes metanarrativas, a ascensão proletária, o movimento
revolucionário, a teleologia histórica, isso tudo era um grande equívoco.
Eu diria que não foi um pequeno equívoco. Você não pode
abandonar perspectivas de largo desenvolvimento histórico. Do contrário, os
acontecimentos ficam completamente opacos, você torna-se incapaz de enxergá-los.
Os fatos parecem vir no ritmo do acaso, da completa contingência.
No entanto, existe o espaço da contingência. Ou seja, há
acontecimentos completamente imprevisíveis, que exigem uma reformulação ampla
dessa perspectiva de análise histórica. Isso não aconteceu. Eu diria que uma
tarefa atual é compreender o lugar da contingência no interior de uma dinâmica
onde a necessidade vai se construindo. Ninguém enxerga muito bem o que está
acontecendo, isso só é possível depois. Em certos momentos da história, algumas
pessoas conseguem mobilizar mais e dizer: “vejam, existe uma abertura, um
desfiladeiro. A gente consegue passar por aqui”.
Falta acreditar que os processos abertos não necessariamente
terminam em catástrofe. A gente absorveu muito essa ideia: se quisermos grandes
mudanças, provocaremos catástrofes. Segundo tal lógica, só estaríamos seguros
no presente – por mais que o detestemos e o julguemos insuportável. Espero que
esse raciocínio desapareça o mais rápido possível. Ele expressa a cultura do medo:
você não projeta nada para frente. Você se rende ao presente.
Nos momentos de crise, há tanto busca de novos referenciais,
quanto retorno do autoritarismo. Num país como o Brasil, em que as correntes
conservadoras são muito fortes, não há risco de que esta segunda posição
prevaleça?
Safatle: Essa é uma luta que existe no Brasil hoje. Nosso
debate político é hoje cultural. Os projetos econômicos são mais ou menos
iguais. Existem distinções, mas não são enormes, reais. Ninguém prega grandes
reformas. Nenhum partido importante sugere: “vamos fazer uma democracia
plebiscitária”. Há um grande consenso.
Onde está o debate político? Está no campo da cultura, dos
costumes, dos hábitos. O aborto virou um dos temas mais importantes do Brasil.
Casamento homossexual, todos os outros problemas ligados à modernização dos
costumes.
Isso tem um lado bom. A gente está brigando por formas de
vida distintas. Mas isso também demonstra que o debate centrado na cultura
sempre tocou muito mais os jovens e sempre é um debate da esquerda. Hoje, há
uma direita cultural, um pensamento cultural de direita forte, conservador, que
consegue mobilizar camadas da juventude. Julgo isso algo muito grave, mas
lembro que é característica de todos os processos históricos ricos: a juventude
dividindo-se ao meio. Há uma ala conservadora, outra progressista. Na época da
ditadura militar, esse processo era muito claro.
A França viveu uma eleição agora. Um partido de
extrema-direita ficou em terceiro lugar – e em primeiro, nos votos dos jovens
entre 18 e 25 anos. Por que? Eles trazem questões culturais: imigração; nossos
valores; nossa forma de vida; nossa religião contra a religião “atrasada” dos
“outros. São debates que estão, de uma maneira ou de outra, chegando no Brasil.
A gente precisa se preparar para isso, também. Para uma divisão que vai
ocorrer, de maneira cada vez mais forte. Não há como escapar dela.
Você conseguiria apontar quais são alguns agentes dessa
direita cultural?
Safatle: Existe uma proliferação de blogues de extrema-direita
no Brasil, que a juventude lê. São colunistas de jornal, que se assumem
claramente como conservadores. Isso não deve ser negligenciado: é um fenômeno
que veio para ficar.
Significa o quê? Que o debate cultural deve ser feito com
toda a força. A discussão sobre a memória é um aspecto decisivo. Que tipo de
sociedade queremos? Uma sociedade que acredita que, esquecendo crimes do
passado, você tem um presente melhor? Uma sociedade que tem medo de fazer
memória? Onde você publica um artigo sobre a ditadura na internet, e surgem 150
pessoas comentando como era fantástica a vida naquele tempo, como pelo menos
não tinha corrupção?
Há um preceito liberal que se chama “Direito de Resistência”.
Não está em Lênin, mas em Locke, que era a favor do tiranicídio. Dizia: “se um
tirano usurpa os seus direitos, as liberdades individuais e as liberdades
sociais, ele merece a morte”. Isso está também no Rousseau – ou seja, na
tradição liberal do pensamento político. Se algumas pessoas têm a coragem de
usar a famosa teoria dos dois demônios,segundo a qual havia terroristas de
esquerda e de direita, elas colocam-se aquém da perspectiva liberal de
política.
Que tipo de sociedade essas pessoas procuram realizar no
presente? Penso que não é mais possível admitir mais esse tipo de situação.
Eles querem dizer que, mesmo numa ditadura, a violência contra o Estado não é
aceitável. Para mim, é uma das proposições mais antidemocráticas que se possa
imaginar. Na década de 1920, greve era um crime. Mas foi graças a esse crime
que os direitos trabalhistas foram universalizados.
Uma esquerda mais clássica, organizada em partidos, fala
numa disputa entre hegemonia e contra-hegemonia – e sugere disputar instituições
como a mídia, o governo, o parlamento. Este tipo de opinião pode enfraquecer os
movimentos da juventude que procuram uma saída não-institucional e novas formas
de política?
Safatle: Acho que não – e é um ótimo tema. Há momentos em
que você precisa saber como se organizar institucionalmente. A Primavera Árabe
demonstra isso claramente. Começou, sempre, com movimentos jovens: na Tunísia,
diplomados desempregados; no Egito, o movimento 6 de Abril, composto por jovens
de várias tendências políticas. Conseguiram resultados imediatos mas, na hora
de gerir o processo, não existia uma estrutura institucional, uma organização.
Quem colheu todos os frutos do processo foram
os partidos islâmicos, mais organizados e com capilaridade popular.
Qual o modelo de organização para grupos que não admitem o
partido como a figura clássica de organização? Uma nova estrutura política?
Frentes mais flexíveis? É algo que precisaremos, em algum momento, responder.
Do contrário, todas as estruturas institucionais serão dominadas por aqueles
que já sabem operá-las. E elas não vão desparecer. O Estado, as eleições, os
sindicatos não vão desaparecer.
Novas instituições poderiam superar as que existem agora?
Poderíamos imaginar a fundação de um novo Estado e uma nova forma sociedade? Ou
é muita pretensão?
Safatle: Sempre fui firmemente contrário ao slogan “mudar o
mundo sem tomar o poder”, de John Holloway. Os donos do poder agradecem: se tal
postura prevalecer, irão atrapalhar todas as nossas tentativas de mudar o
mundo: não conseguiremos fazer nada.
Não existe política completamente à margem da estrutura
institucional, da mesma maneira como não se pode fazê-la só dentro das
instituições. Há uma região limítrofe, que é necessário saber operar.
Precisamos ir além do pensamento binário, do “ou totalmente fora, ou totalmente dentro”. Há
algo no meio do caminho, que você opera pressionando de fora. Isso, ainda não
conseguiu constituir. Só há um grupo que conseguiu fazer isso: os lobistas. Os
lobbies estão semi-institucionalizados. Operam de fora, forçando a estrutura
institucional. É necessário uma espécie de lobby popular, que seja contraponto
ao lobby econômico.
Pensei no texto “O que é ser contemporâneo?”, do Giorgio
Agamben. Ele sugere reconhecer a época em que vivemos, assumir que ela tem
instituições, e ao mesmo tempo negá-la, querer deixá-la. É isso que inspira a
juventude?
Safatle: Sim, com certeza existe essa região limítrofe que é
necessário saber operar. Volto a insistir: o Estado, os partidos e o parlamento
não vão desparecer. No entanto, você pode operar as estruturas políticas em
outras chaves. Forçar a democracia plebiscitária, esvaziar atribuições do
parlamento, transferir decisões para a população, ativando processos de
democracia direta.
Qual é a estratégia de desmobilização? É dizer: “ou você
está dentro do Estado de Direito, ou você está fora; ou aceita a estrutura
institucional tal como ela é hoje, ou está completamente fora e portanto faz
apologia da ditadura”. Não existe isso.
Você pode perfeitamente admitir que algumas estruturas vão
continuar e, ao mesmo tempo, construir processos de transferência direta de
poder. Esse me parece o grande desafio ao pensamento político atual. Como a
gente constrói, como dá figura para as demandas de democracia real? Há muitos exemplos.
Um deles: a Islândia foi um dos primeiros países a mergulhar na crise econômica
europeia. Bancos islandeses tomaram dinheiro emprestado nos Países Baixos e
Inglaterra. Quando quebraram, a Inglaterra e os Países Baixos apresentaram a
conta ao governo islandês: os bancos eram privados, mas a conta foi para o
Estado. O parlamento se dobrou, aceitando a conta bilionária. A população –
pequena, em torno de 250 mil habitantes – teria de pagar durante cinquenta anos
a dívida dos bancos.
Bem, havia um presidente, um pouco mais sensato, que lembrou
uma regra da Constituição islandesa, segundo a qual os presidentes têm o
direito de consultar a sociedade, antes de promulgar leis. Convocou-se um
plebiscito: o povo foi chamado a votar se queria ou não pagar a dívida. Pode-se
imaginar o terrorismo: em caso de não-pagamento, dizia-se, o país iria
converter-se em pária internacional.
Mas o povo disse não. Hoje, a Islândia está melhor do que
todos os outros países que entraram na crise à mesma época: Portugal, Espanha,
Grécia, Irlanda. Isso ensina que é possível politizar a economia, tirar poderes
indevidos. Alegar que um parlamento sozinho não pode decidir uma questão tão
central como essa. Um parlamento é composto de pessoas que têm as eleições
pagas por bancos… O parlamentar deve para o banco: há uma nova eleição daqui a
quatro anos e ele sabe que, se votar contra, não tem mais financiamento, não
vai ser reeleito. Como uma pessoa dessas pode tomar esse tipo de decisão?
Mas no caso da Espanha, por exemplo, os indignados não
conseguiram construir alternativas como essa. O movimento caminha nessa
direção?
Safatle: Na Islândia, já havia o mecanismo institucional.
Tiveram a sorte de contar com um presidente um pouco mais sensato, que deu
realidade ao processo. Mas é um dado extremamente interessante, porque pode ser
transformado em bandeira: “quero que na Espanha a lei islandesa seja aplicada”.
É possível fazer o mesmo em várias outras situações. Você tensiona o debate. Os
conservadores reagirão: “a população não pode decidir sobre essas coisas, são
muito complexas, só tecnocratas têm que decidir”.
“Mas, então, fala, fala na nossa frente: só tecnocrata de
banco vai decidir o que vão fazer com o nosso dinheiro?” Vamos ver o que vai
acontecer. Este é um recurso muito importante: você obriga o poder a falar os
seus absurdos, que ele normalmente não tematiza. Todo mundo sabe que quem
decide é tecnocrata, mas ninguém fala. Quando certas coisas são ditas, algo
acontece, mesmo que exista um acordo tácito entre as pessoas. Por isso, uma
questão política central é obrigar o poder a falar, colocá-lo contra a parede.
*Estudantes de jornalismo da PUC-SP e colaboradores de
Outras Palavras
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As artes visuais também mergulharam contudo na onda criativa que emerge na Primavera paulistana.
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Imagem: Perfil Mário Pirata (Face) |
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Perfil Marcos Rolim (Face) |
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