sexta-feira, 12 de julho de 2013

O dilema dos churrasquinho e outros vícios da carne e da mente

Hoje vivi mais uma vez o dilema do churrasquinho, mas quero crer e fazer acontecer que este deixe de ser uma questão de dúvida em minha vida. Mas isso não aconteceu sem uma mistura de momentos de esparsas análises, reflexões e relações entre as dimensões política, sexual e gastronômica de minha vida. Sim, admito sem problemas, somos essa mistura - no prazer e na dor. 

Seja no consumo dos bens simbólicos pelas nossas subjetividades, seja na degustação dos bens calóricos pelas nossas papilas, seja no acalento das necessidades sexuais por nossos sentidos e órgãos, somos, definitivamente, prisioneiros ou emancipados.

Explico. A despeito de minha perseguidora atitude de abandonar o consumo da carne e de todos produtos produzidos com origem animal, adoro churrasquinho. E isso é fácil compreender na vida de qualquer pessoa que cresceu consumindo esse tipo de carne, e que nunca teve um estímulo em sentidos diferentes, por razões que se repetiram com meus pais, avós, e assim por diante. 

O vício disfarçado de hábito, em outras palavras. Mesmo assim, perseguindo meu propósito maior, deixei, há um bom tempo, de frequentar churrascarias - onde o consumo da carne envolve, prioritariamente, motivações relacionados ao prazer e a lucratividade. Mas, quanto ao churrasquinho, ainda não vinha resistindo. Basta passar por um carrinho com fumaça (comum nessas bandas) e sentir aquele cheiro, tendo a buscar um. 

Todavia, na busca de uma construção racional e motivadora para deixar de vez esse hábito, suficientemente forte para transformar vontade em ação, pensei na questão da relação sexual, que aliás, tem muito a ver com carne. Como? Simples, questão de liberdade. 

E o que tais vícios carnais, passíveis de nos emanciparmos, poderiam ter a ver com a presente ocupação e cobertura da Câmara de Vereadores de Porto Alegre?  Justamente, questão de liberdade, e claro de um esforço do olhar e da mente. 

Somos, como todos sabem, alimentados desde cedo por um comportamento passivo e receptivo diante da informação. Desde a infância, os primeiros contatos com o mundo pelos meios de comunicação se dão a partir de posturas abertas apenas ao ouvir. Decididamente, é alheio a nossa realidade o hábito de atuar e ser sujeito. Até mesmo na escola a posição de pedir licença para falar é encarada incomodamente.


Com a adolescência e a fase adulta, o telejornalismo mastigado, a imprensa escrita pasteurizada, os filmes hollywoodianos e tudo mais dão o coroamento dessa cultura passivista, em que nunca aprendemos a ser agentes de nosso destino e daquilo que nos cerca, com as exceções - dias atuais raras e confusas - do ativismo político. Mas podemos mudar de postura sobre várias coisas, quando decidimos intimamente.


Por exemplo, costumo explicar a minha recusa a transar com prostitutas pelo fato básico, entre outros, de que não transo com alguém que não tenha vontade de transar comigo. Está aí, implicitamente, uma questão de liberdade, já que, na condição de prostitua, as mulheres exercem uma relação íntima submissa ao dinheiro, e não a sua vontade. Não estão, portanto, livres para exercer seu prazer sexual (ou da carne) por vontade. Indiferentes a isso, nós homens - e as mulheres, no seu modo - tendemos a nos acomodar na tranquila e canina correspondência de nossos desejos mais fugazes. 


No âmbito político, esse acomodamento se dá, em vital parte, porque a liberdade tem um preço que estamos avessos a pagar. Ele pode ser, às vezes, o de contrariar a ordem vigente. A ação do pessoal que ocupou a Câmara de Vereadores de Porto Alegre e sua ampla articulação a partir do apoio de uma rede de comunicação alternativa, contraria a ordem vertical, homogênea e rotineira que o jornalismo tradicional nos alimenta entre a infância e a velhice. Compreender o processo desencadeado por aqueles jovens, e se inteirar dele por canais alternativos, nos obriga a uma postura ativa e pervertedora do que estamos acostumados. 

Ao nos unirmos a massa amorfa, que se constitui recipiente da comunicação de massa de uma só voz, indiretamente, ignoramos, solenemente, outros olhares editoriais possíveis. Estes, nunca encontraram, e nunca encontrarão, espaço para dar as suas versões dos fatos. Em outras palavras, em prol da adesão de consumidor passivo a uma linguagem comunicativa corporativa, sustentada em uma democracia formal, somos anestesiados pela paz da ordem que enterra a liberdade da democracia social no silêncio imposto pelo limite das condições objetivas das realidades marginalizadas. 

Traduzindo em miúdos, se quiséssemos compreender, por exemplo, a real dimensão da questão da redução da maioridade penal, seria necessário superar o olhar raso que caracteriza a campanha aberta da mídia corporativa em favor de que menores vão para a cadeia pelo crime que cometeram. Teríamos que considerar, por exemplo, que a questão da vontade desses menores não corresponde, necessariamente, a consciência da prática de delitos ou crimes; que há fatores sensitivos que interferem nesse favorabilidade social, entre os quais, o da mídia corporativa. E que potencializam esse processo de formação da opinião pública. 

Trazendo isso para o consumo da carne animal, tem tudo a ver. Os animais, que são sacrificados para a lucratividade e o prazer alheio, não o são por liberdade própria. Muito pelo contrário. São retirados do seus habitat, escravizados, torturados e executados absolutamente indiferente de suas vontades. Contrários, portanto, a suas liberdades. 

A nossa passividade em aceitar a formação da opinião em prol da sua criminalização dos menores que delinquem, como ocorre com outras questões, se assemelha à passividade e comodismo de ajustar nossa consciência ao prazer do consumo da carne animal.

De minha parte, quanto ao consumo do churrasquinho, assim será. Assumo uma nova postura. Se vai ser fácil? Claro que não. Mas agora, pelo menos, tenho um fio condutor de coerência, que vai facilitar a construção de alternativas a esse prazer fugaz.  

Um outro gancho possível de se fazer entre essas duas dimensões da vida - sexual e gastronômica - é o de que precisamos conhecer aquilo com o que nos relacionamos. Se pensarmos bem, pouco ou nada conhecemos do que consumimos gastronomicamente. Os efeitos, em geral, se dão ao longo prazo.

Quanto aos seres humanos, tenho me dado conta que as pessoas que se revelam de maneiras distintas. A palavra é uma das formas mais comuns, mas o silêncio e o comportamento geral perante certas situações também são indicadores. Li por esses dias algo como se queres conhecer alguém veja como age, e não necessariamente o que diz. 

Talvez por isso que nos relacionamentos humanos íntimos as pessoas terminam por se conhecer melhor realmente quando passam a conviver sob o mesmo teto, não que isso seja necessário, e acho até mais que dispensável. Mas é fato que conhecer alguém tem a ver muito com um exame de sua história de vida, ou um período de convivência real de situações contrastantes enfrentadas por essa pessoa, sob nossa observação.

Voltando ao ponto político, observando ontem, via link ao vivo do Catarse, a dinâmica da reunião do grupo que ocupou a Câmara de Vereadores de Porto Alegre notei que essa moçada, diferente do que às vezes quer se fazer crer, tem um nível de maturidade política consistente. Há uma ordem, na anarquia ali estabelecida, que define direções de mando e de cumprimento de tarefas em áreas essenciais como alimentação, segurança e  comunicação. 

Em contraste com o movimento dos grevistas, puxado por lideranças sindicais, a juventude demonstra uma criatividade, união e espontaneidade, que revigora a política. É certo que a ocupação é um ato ilegal, porém, há de se considerar que é um grupo de mais de 50 pessoas, articuladas e que não detém armas. Se não me engano, há um certo conceito denominado Desobediência Civil, que dá certa legitimidade a esse tipo de ação, ainda que transgrida a lei. 

O certo é que há por aí uma nova forma de manifestação popular, em um formato diferenciado, singular e inovador, que precisa ser considerado na cultura política contemporânea. Inclusive, e até especialmente, pela chamada esquerda - seja lá o que isso signifique hoje. 

Daí que, transpus esse princípio de relacionamentos sexuais para a minha realidade gastronômica. E daí que também aproveito para relacionar essa apologia ao prazer da carne, em seus diferentes níveis, a nossa realidade política crua e presente.

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