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"Há um longo caminho pela frente, e em pouco tempo
teremos de enfrentar questões realmente difíceis – questões não sobre aquilo
que não queremos, mas sobre aquilo que QUEREMOS. Qual organização social pode
substituir o capitalismo vigente? De quais tipos de líderes nós precisamos? As
alternativas do século XX obviamente não servem.".
Slavoj Žižek é um filósofo esloveno que tem acompanhado de
perto a nova emergência de movimentos populares por todo o mundo. Hoje estará
no Roda Viva, na TV Cultural, que irá ao ar às 22h.
Vejam trecho do discurso de Zizek em 2011 aos manifestantes
do Occupy Wall Street:
Não se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável
que estamos tendo aqui. Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de
seu valor é o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida
normal e cotidiana será modificada. Apaixone-se pelo trabalho duro e paciente –
somos o início, não o fim. Nossa mensagem básica é: o tabu já foi rompido, não
vivemos no melhor mundo possível, temos a permissão e a obrigação de pensar em
alternativas. Há um longo caminho pela frente, e em pouco tempo teremos de
enfrentar questões realmente difíceis – questões não sobre aquilo que não
queremos, mas sobre aquilo que QUEREMOS. Qual organização social pode
substituir o capitalismo vigente? De quais tipos de líderes nós precisamos? As
alternativas do século XX obviamente não servem.
Então não culpe o povo e suas atitudes: o problema não é a
corrupção ou a ganância, mas o sistema que nos incita a sermos corruptos. A
solução não é o lema “Main Street, not Wall Street”, mas sim mudar o sistema em
que a Main Street não funciona sem o Wall Street. Tenham cuidado não só com os
inimigos, mas também com falsos amigos que fingem nos apoiar e já fazem de tudo
para diluir nosso protesto. Da mesma maneira que compramos café sem cafeína,
cerveja sem álcool e sorvete sem gordura, eles tentarão transformar isto aqui
em um protesto moral inofensivo. Mas a razão de estarmos reunidos é o fato de
já termos tido o bastante de um mundo onde reciclar latas de Coca-Cola, dar
alguns dólares para a caridade ou comprar um cappuccino da Starbucks que tem 1%
da renda revertida para problemas do Terceiro Mundo é o suficiente para nos
fazer sentir bem. Depois de terceirizar o trabalho, depois de terceirizar a
tortura, depois que as agências matrimoniais começaram a terceirizar até nossos
encontros, é que percebemos que, há muito tempo, também permitimos que nossos
engajamentos políticos sejam terceirizados – mas agora nós os queremos de
volta.
Dirão que somos “não americanos”. Mas quando
fundamentalistas conservadores nos disserem que os Estados Unidos são uma nação
cristã, lembrem-se do que é o Cristianismo: o Espírito Santo, a comunidade
livre e igualitária de fiéis unidos pelo amor. Nós, aqui, somos o Espírito
Santo, enquanto em Wall Street eles são pagãos que adoram falsos ídolos.
Dirão que somos violentos, que nossa linguagem é violenta,
referindo-se à ocupação e assim por diante. Sim, somos violentos, mas somente
no mesmo sentido em que Mahatma Gandhi foi violento. Somos violentos porque
queremos dar um basta no modo como as coisas andam – mas o que significa essa
violência puramente simbólica quando comparada à violência necessária para
sustentar o funcionamento constante do sistema capitalista global?
Seremos chamados de perdedores – mas os verdadeiros
perdedores não estariam lá em Wall Street, os que se safaram com a ajuda de
centenas de bilhões do nosso dinheiro? Vocês são chamados de socialistas, mas
nos Estados Unidos já existe o socialismo para os ricos. Eles dirão que vocês
não respeitam a propriedade privada, mas as especulações de Wall Street que
levaram à queda de 2008 foram mais responsáveis pela extinção de propriedades
privadas obtidas a duras penas do que se estivéssemos destruindo-as agora, dia
e noite – pense nas centenas de casas hipotecadas…
Nós não somos comunistas, se o comunismo significa o sistema
que merecidamente entrou em colapso em 1990 – e lembrem-se de que os comunistas
que ainda detêm o poder atualmente governam o mais implacável dos capitalismos
(na China). O sucesso do capitalismo chinês liderado pelo comunismo é um sinal
abominável de que o casamento entre o capitalismo e a democracia está próximo
do divórcio. Nós somos comunistas em um sentido apenas: nós nos importamos com
os bens comuns – os da natureza, do conhecimento – que estão ameaçados pelo
sistema.
Eles dirão que vocês estão sonhando, mas os verdadeiros
sonhadores são os que pensam que as coisas podem continuar sendo o que são por
um tempo indefinido, assim como ocorre com as mudanças cosméticas. Nós não
estamos sonhando; nós acordamos de um sonho que está se transformando em
pesadelo. Não estamos destruindo nada; somos apenas testemunhas de como o
sistema está gradualmente destruindo a si próprio. Todos nós conhecemos a cena
clássica dos desenhos animados: o gato chega à beira do precipício e continua
caminhando, ignorando o fato de que não há chão sob suas patas; ele só começa a
cair quando olha para baixo e vê o abismo. O que estamos fazendo é simplesmente
levar os que estão no poder a olhar para baixo…
Então, a mudança é realmente possível? Hoje, o possível e o
impossível são dispostos de maneira estranha. Nos domínios da liberdade pessoal
e da tecnologia científica, o impossível está se tornando cada vez mais
possível (ou pelo menos é o que nos dizem): “nada é impossível”, podemos ter
sexo em suas mais perversas variações; arquivos inteiros de músicas, filmes e
seriados de TV estão disponíveis para download; a viagem espacial está à venda
para quem tiver dinheiro; podemos melhorar nossas habilidades físicas e
psíquicas por meio de intervenções no genoma, e até mesmo realizar o sonho
tecnognóstico de atingir a imortalidade transformando nossa identidade em um
programa de computador. Por outro lado, no domínio das relações econômicas e
sociais, somos bombardeados o tempo todo por um discurso do “você não pode” se
envolver em atos políticos coletivos (que necessariamente terminam no terror
totalitário), ou aderir ao antigo Estado de bem-estar social (ele nos
transforma em não competitivos e leva à crise econômica), ou se isolar do mercado
global etc. Quando medidas de austeridade são impostas, dizem-nos repetidas
vezes que se trata apenas do que tem de ser feito. Quem sabe não chegou a hora
de inverter as coordenadas do que é possível e impossível? Quem sabe não
podemos ter mais solidariedade e assistência médica, já que não somos imortais?
Em meados de abril de 2011, a mídia revelou que o governo
chinês havia proibido a exibição, em cinemas e na TV, de filmes que falassem de
viagens no tempo e histórias paralelas, argumentando que elas trazem
frivolidade para questões históricas sérias – até mesmo a fuga fictícia para
uma realidade alternativa é considerada perigosa demais. Nós, do mundo
Ocidental liberal, não precisamos de uma proibição tão explícita: a ideologia
exerce poder material suficiente para evitar que narrativas históricas
alternativas sejam interpretadas com o mínimo de seriedade. Para nós é fácil
imaginar o fim do mundo – vide os inúmeros filmes apocalípticos –, mas não o
fim do capitalismo.
Em uma velha piada da antiga República Democrática Alemã, um
trabalhador alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que todas as suas
correspondências serão lidas pelos censores, ele diz para os amigos: “Vamos
combinar um código: se vocês receberem uma carta minha escrita com tinta azul,
ela é verdadeira; se a tinta for vermelha, é falsa”. Depois de um mês, os
amigos receberam a primeira carta, escrita em azul: “Tudo é uma maravilha por
aqui: os estoques estão cheios, a comida é abundante, os apartamentos são
amplos e aquecidos, os cinemas exibem filmes ocidentais, há mulheres lindas
prontas para um romance – a única coisa que não temos é tinta vermelha.” E essa
situação, não é a mesma que vivemos até hoje? Temos toda a liberdade que
desejamos – a única coisa que falta é a “tinta vermelha”: nós nos “sentimos
livres” porque somos desprovidos da linguagem para articular nossa falta de
liberdade. O que a falta de tinta vermelha significa é que, hoje, todos os
principais termos que usamos para designar o conflito atual – “guerra ao terror”,
“democracia e liberdade”, “direitos humanos” etc. etc. – são termos FALSOS que
mistificam nossa percepção da situação em vez de permitir que pensemos nela.
Você, que está aqui presente, está dando a todos nós tinta vermelha.
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