quinta-feira, 12 de junho de 2014

Um clima de futebol que inspira memórias

Por Sebastião Pinheiro
(Postado ontem)


Fotos: Arquivo Sebastião Pinheiro







Saí para ir ao mercado comprar erva-mate, pois amanhã começa o Mundial de Futebol. Ao passar pela subestação de eletricidade da cidade (Porto Alegre) deparei com um soldado do exército armado para combate. Ele estava tenso... Continuei meu caminho pensando. Não é uma festa internacional da qual somos anfitriões, naquilo que mais gostamos de fazer. E muitos não entendem que quando perdemos, somos magnânimos em aplaudir o vencedor sem perder a dignidade, talvez por isso sejamos entre muitos povos reconhecidos como pessoas cordiais, alegres, e poderíamos exagerar dizendo que até relativamente irresponsáveis ou exagerados nesses aspectos.

O que tira o soldado do quartel, pois violência, rebelião, intolerância não são componentes vigentes na nossa Sociedade. Continuei pensando e me veio na memória um livro. Um dos livros mais belos de minha juventude foi escrito pelo espanhol Vicente Blasco Ibañez “Os quatro cavaleiros do Apocalipse”. Tive a sorte de lê-lo no original enquanto estudava na Argentina naqueles anos de chumbo que já se iniciavam (1967) na primeira década de agonia do que fora o país mais rico do mundo sem ter subjugado outros e sem as desigualdades que começavam a exorbitar pelo mundo com a Ordem pós Segunda Guerra Mundial. O livro é um panegírico àquele povo e nação.

Sua leitura obrigou-me estudar “Martin Ferro” de José Hernandez, “La Bíblia Gaúcha” como diziam colegas de faculdade e, por dever de ofício perceber como a fertilidade do solo se transformava em riqueza e atraía a colonização européia ao país (infelizmente sem as mesmas oportunidades para seus aborígenes Pehuelches, Tehuelches, Mapuches, Tobas, Wichis, Guaranis).

A Argentina foi o refúgio de milhares de fugitivos desde escravos do Império vizinho aos perseguidos pela fome, miséria, crenças e guerras. Tábua de salvação e esperança para milhões de desgraçados cujo êxito sócio, cultural, econômico a história é o argumento que o primeiro livro retrata, mas pouco compreensível sem a leitura da “Bíblia gaúcha” que ensina o sincretismo na estruturação do comportamento ético e poder social espelhado em muito nos jacobinos. País onde os níveis de desigualdades ficam irrisórios ou atenuados com políticas públicas deveras interessantes tanto por B. Irigoyen, Croto, Palácios e depois Perón (Evita).

Estou me referindo a esse país que tem em seu acervo cinco prêmios Nobel, pois na periferia das cidades por todo o país há cartazes e aviso de risco de linchamento. O que espanta é que a totalidade das vítimas de justiça pelas próprias mãos são jovens nascido há menos de trinta anos, já no período de democracia restaurada e com a nova Ordem Mundial, unilateralismo da OMC, nos meios diplomáticos apelidado de “Consenso de Washington”.

O pior é que a realidade argentina é a mesma no México, Bolívia, Peru, Equador, Brasil, Guatemala e de toda a América Latina, ou seja, é algo que transcende, supera as sociedades locais: É a violência, pior doença que assola a humanidade e nos últimos vinte anos ela vem grassando como epidemia de forma exponencial pelo mundo que vê crescer vertiginosamente alguns bilionários e as levas de miseráveis.

As ditaduras foram substituídas por “democracias”, mas as desigualdades culminam, mesmo com governos que faziam discurso popular, populista, social democrata ou “esquerdista”. O que perdemos que leva a esse desencadear ou retrocesso civilizatório?

Não é compreensível que países que fizeram sua revolução nacional sofram tal tipo de violência, que atinge as raias do absurdo, enquanto governantes se preocupam em oferecer condições subjugar a cidadania aos interesses financeiros de grandes corporações internacionais e elite nacional, por exemplo, qual é o maior consumidor per capita de Coca-Cola no planeta?

Ao procurar no Google fotos dos recentes linchamentos na América Latina, encontrei também fotos de vítimas de linchamento nos EUA após os anos 30. A grande maioria era de cidadãos negros e os linchadores estão satisfeitos sorrindo, inclusive as crianças. No recente linchamento no Brasil o frenesi era o registro com o celular com a mesma indiferença, ódio e até alegria. É o mimetismo de “valor” por “preço” o indutor da barbárie fratricida? Que leva à perda de respeito para poder consumir e logo existir?

Na Bósnia vimos isso na década passada sem disfarces. Nos EUA esta “higienização” começou com a “Ku Klux Klan” na expulsão dos negros das atividades rurais autônomas e confisco de suas terras (recém concedidas na abolição da escravidão, resultado da Guerra Civil) e segregação dos brancos solidários (carptbaggers, scalawags), tolerantes ou indiferentes tratados de forma similar. Isto foi cada vez mais encoberto na consolidação do “stablishment” (governo, concessões de serviços públicos e publicidade).

Esmaece o ocorrido na Revolta de Watts (Los Angeles, 1965) revolta dos negros que fez emergir a legislação de “Direitos Civis” nos EUA. Sequer refletimos sobre o ocorrido dez dias antes do início dos Jogos Olímpicos do México (1968), onde mais de duas centenas de jovens foram massacrados e mais de 1.500 presos. Quem lembra o ícone dos punhos esquerdos enluvados erguidos pela consciência de atletas cidadãos de segunda classe (Black Power, Black Panthers), imediatamente destituídos e expulsos da Vila Olímpica. Por quê? Tanto a Olimpíada quanto a Copa Mundial de Futebol é negócio de mafiosos. Fizeram-nos mudar uma lei que proíbe a venda de bebidas alcoólicas nos estadios. Pobre Soldado, que talvez nem sequer possa ver o jogo pela TV e ficará mais insatisfeito.

As cicatrizes norte-americanas voltaram abrir em Los Angeles em 1992 (Rodney King); repetiu-se sincronizada com o ocorrido na Conferência da OMC em Seattle (1999) e Flórida em 2013 (julgamento do assassinato de Trayvon Martin). Já Londres e Vancouver em 2012 estiveram sincronizadas com a mesma realidade de perda de qualidade cidadã.

Parece que o “KKK” em marcha sobre Washington (foto) ganhou um novo K, de “konsum” e expandiu-se como modelito para o mundo.

Há um quinto K (de “Kloran” utilizado nos meios concessionados de comunicação). A FIFA distribuiu material pedagógico nas escolas de Porto Alegre com propaganda de interesse da “Food Industry” em enganar com alimentos cheios de sal, gordura e açúcar.

No mercado tive uma surpresa, a erva-mate aumentou quase dez por cento. É eu sou um “croto” na acepção hermética da palavra.

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