Médica de família 'dirige Chevette e namora Creisom' em
apostila para concurso
Atendimento em Posto de Saúde da Família em Novo Gama (GO) | Foto: Antonio Cruz / Agência Brasil
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Médicos de família e comunidade estão no centro de programas
de governo e propostas para a saúde
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Camilla Costa, da BBC Brasil em São Paulo, 22 setembro 2014
"Ao ouvir as histórias dos amigos, você ficava triste:
os dermatologistas, todos bem de vida (...); o pessoal da cirurgia plástica
chegando de carro importado e você caladinha, envergonhada de estar em um fim
de mundo, dirigindo seu Chevette hatch, ano 87, com três calotas, e namorando
Creisom, motorista da ambulância do seu município...".
Esta é a descrição de um hipotético encontro de colegas de
Medicina que aparece em uma apostila do Medcurso, o principal curso
preparatório para concursos médicos no Brasil. A situação descrita acima
introduz uma série de perguntas sobre a atenção básica de saúde. A
"motorista do Chevette", que aparece envergonhada, é uma médica que
optou por atuar em um Posto de Saúde da Família (PSF) em uma cidade do
interior. O material do curso preparatório chega a dizer ainda que líderes de
esquerda como Hugo Chávez e Evo Morales seriam os "heróis" dos
médicos que trabalham com atenção básica.
A apostila ilustra a imagem que médicos de família e
comunidade - que atuam majoritariamente no SUS e em postos de saúde - têm
entres os profissionais de Medicina no Brasil. Apesar de estarem no centro de
programas de governo - como o Mais Médicos - e das propostas de candidatos à
Presidência para a saúde, os médicos de família são ainda uma especialidade
pouco conhecida da população e pouco procurada dentro das escolas de Medicina:
dos cerca de 390 mil médicos no país, apenas cerca de 4 mil são médicos de família,
cerca de 1% do total.
Profissionais que optaram pela especialidade relatam sofrer
preconceito entre professores e colegas, apesar da importância da categoria no
atendimento aos problemas de saúde mais básicos que afetam os brasileiros.
"Sou formado há 12 anos e aconteceu em vários momentos em encontros de
turma de me perguntarem quando farei uma especialidade de verdade", disse
Rodrigo Lima, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e
Comunidade, à BBC Brasil.
"Eu já tive muitos alunos que chegaram a relatar: 'Eu
tenho vontade de ser médico de família, mas não sei como minha família
encararia isso, não sei se vou conseguir convencê-los'. Para um aluno de 20
anos é difícil resistir à pressão de ter que ter o carro do ano, ser muito bem
sucedido financeiramente. É o ideal que a sociedade tem do que é ser
médico."
Desvalorização
O Programa de Saúde da Família - criado durante o governo
Fernando Henrique Cardoso – tem o objetivo de oferecer atendimento primário de
saúde, que procure prevenir e resolver a maior parte dos problemas em
determinado território sem a necessidade de encaminhamento para hospitais
especializados. A estratégia foi ampliada durante os governos do PT.
Nos postos de saúde e unidades básicas, uma equipe de
médicos, enfermeiros e agentes comunitários deve acompanhar até quatro mil
pessoas – desde crianças até idosos. O bom funcionamento do modelo, que também
é adotado por países como Inglaterra, Canadá e Austrália, ajudaria a evitar a
superlotação de emergências e hospitais, um dos principais gargalos do
atendimento médico no país.
Na prática, no entanto, os profissionais relatam unidades
com demanda mais alta do que o previsto, condições precárias de trabalho, falta
de materiais básicos para o atendimento e dificuldade de completar as equipes
médicas.
"Os Postos de Saúde e Unidades Básicas de Saúde hoje
não dão conta da demanda por uma série de razões. Então o que temos hoje é uma
rede enorme de serviços que não conseguem resolver os problemas e cria nas pessoas
a ideia de que 'o postinho não resolve, o melhor é o hospital'", diz
Rodrigo Lima.
Além do Mais Médicos, que contratou profissionais brasileiros
e estrangeiros para complementar equipes de saúde da família em todo o país, a
formação de profissionais dispostos a atuar na atenção básica também foi alvo
de diversas estratégias durante os governos Lula e Dilma. Entre elas, a mudança
no currículo de Medicina – que passou a exigir que os alunos frequentem postos
de saúde desde o início do curso, e o estímulo à abertura de mais programas de
residência da especialidade no país.
Muitos desses programas, no entanto, não conseguem preencher
boa parte das vagas, segundo a SBMFC. Para os médicos, é um sinal de que os
estudantes precisam de mais estímulo para seguirem a carreira. O salário é
considerado um dos fatores que desestimula os médicos - eles ganham em média R$
8 mil, contando com bonificações oferecidas pelas prefeituras para complementar
os salários.
"Nos últimos anos, o governo teve iniciativas que foram
interessantes, mas não suficientes. Se você não botar dinheiro no bolso do cara
para que ele pague as contas, ele não vai ficar", disse Paulo
Klingelhoefer de Sá, médico de família e coordenador do curso de Medicina da
Faculdade de Medicina de Petrópolis (FMP), à BBC Brasil.
"Os alunos falam isso na minha cara. Eu os coloco na
atenção primária desde o começo do curso. Eles acham muito legal, ficam com
pena da população, mas escolhem outro caminho. Escolhem fazer oftamologia,
radiologia, dermatologia. Dizem que medicina da família é coisa para
pobre."
Os três candidatos melhor colocados nas pesquisas sobre a
disputa pela Presidência, Dilma Rousseff, Marina Silva e Aécio Neves, mencionam
a "ampliação" da Estratégia de Saúde da Família em seus programas de
governo e a "valorização" dos profissionais de saúde que atuam no
serviço público. Dois deles, Marina e Aécio, falam especificamente da criação de
uma carreira para médicos no SUS.
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