segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Provocações do Tião - A fome, desde a mandioca, e algumas interrogações sobre a propriedade familiar


Sebastião Pinheiro*

A FAO ordenou a comemoração do Ano Internacional da Agricultura Familiar. Antes de cumprir é importante decifrar o porquê da comemoração para fazê-la como sujeito e não objeto.

A FAO é o organismo multilateral dos alimentos e agricultura. O que não significa um pleonasmo, mas a importância dos primeiros e sua vinculação visceral com a segunda, atividade econômica geradora de riqueza. Ela desde sua criação na Ordem do GATT se identifica com a FOME e a AGRICULTURA MODERNA, como sistema hegemônico de agricultura.



A história registra através dos tempos a imposição de FOME e DITADURA como instrumentos disciplinadores após conquistas, dominação, e depois na administração de colônias e neocoloniais. O óbvio é ignorado: Não existe vida sem alimentos e sua necessidade é essencial para a saúde e capacidade de trabalho. Contudo, em muitos países as crianças desde o fim do leite materno aprendem a conviver com a fome e escassez de alimento.

O pior que pensam que é sua culpa ou castigo e assim vivem, crescem e se multiplicam. Não há memória cívica e poucos lembram aquela mãe na Ilha da Pintada que fazia sopa de papelão para os seus filhos veiculado pela repetidora local de TV. A fome passa a fazer parte de seu inconsciente e cultura. Por revolta e não por lampejos de consciência, o ódio passa a fluir no sangue. O poder controla o nível de inanição para evitar a morte e manter todos obedientes e mansos.

A realidade maior é a obrigação de fugir da fome e miséria de qualquer modo. O que rouba para saciar sua fome não é criminoso aos olhos da lei, mas aos olhos da comunidade é no mínimo é vagabundo...

A principal roupagem da fome é a miséria, fase da pobreza degradada ao extremo. Em contraponto, a vitória com sabedoria usa a educação como ferramenta para o alcance da liberdade e autonomia, única forma de afugentar a fome, sua miséria e ditadura desde o individuo à comunidade.

Somos uma colônia, onde na história da nutrição brasileira vemos que a mandioca (aipim) é nossa herança indígena e primeiro alimento junto ao milho grande fontes de Carbono, junto a outros produtos da natureza, onde a chegada dos africanos enriqueceu o cardápio com seu arroz e feijão, mas os escravos africanos não foram trazidos para alimentar a casa grande com a produção da agricultura familiar. Eles foram trazidos para a produção de minérios, manufatoras e trabalho no charque, cana de açúcar, cacau, algodão e outros para o acúmulo de riqueza. Após o fim da escravidão foram substituídos por colonizadores, que receberam terras, negadas a eles com a abolição. Novos alimentos enriqueceram o cardápio.

O caso do trigo é paradigmático para se entender a agricultura familiar comemorada pela FAO. Nossos primeiros colonizadores já haviam trazido o trigo como base alimentar cultural e tentaram cultivá-lo, mas conseguiram, apenas para o consumo próprio. Os novos colonos conseguiram para abastecer a comunidade o que viabilizou a pequena propriedade rural diversificada, que passou a ser sinônimo de sucesso ultra-social e o trigo base alimentar aristocrática. Ele vai permitir que o RS seja o maior produtor de mandioca do país não para o consumo exclusivo, mas para o mercado como farinha.

Em 1930 há uma revolução e o novo poder passa a oferecer infra-estrutura e incentivar o cultivo trigo como alimento sofisticado perante os miseráveis mandioca e milho de subsistência. Assim é substituído o cultivo da mandioca, milho, batata doce e cará na alimentação de todo o Brasil, pelo consumo de trigo que somente é produzido no extremo sul do país na agora viabilizada, Pequena Propriedade Familiar, apelido dos latifundiários que entendiam que terra é poder. A Pequena Propriedade Rural irá elevar-se e industrializar-se...

Em pouco tempo a demanda por trigo passa a exigir sua importação e ele é extremamente caro, pelo qual todos os países priorizam produzi-lo. Entre nós o importante é a cadeia econômica criada por seu consumo fora da agricultura. Não há cidade minúscula desse país que não tenha uma padaria e são raríssimas as pessoas que nelas encontra a “broa” de milho ou confeitos de mandioca. Uma jovem prendada aprendia então fazer com mandioca de cinqüenta a setenta pratos diferentes, pois esta era sua credencial para a base familiar, pois mandioca não se compra, se cultiva e era a sobrevivência, mas trigo vai suplantá-la a cultura e fortalecer a economia com uma cadeia produtiva de alto poder.

Vejamos o exemplo da agricultura nordestina, tanto de “vazante” como sertaneja, onde as pessoas eram deixadas em paz por não ser possível a produção para o acumulo de capital, floresceu a agricultura de base familiar que a FAO incentiva comemorar em convívio com as vicissitudes da natureza e clima.

Um dos sistemas mais inteligentes no sertão nordestino é o sistema Mocó-Seridó, onde o cultivo de milho, abóbora, feijão de corda, mandioca, inhame e outros aproveitava o esterco do gado, palhas e produzia uma quantidade de alimentos anual superior a trinta toneladas/Ha. É só ver Guimarães Duque e sua “Agrologia” e Vasconcelos Sobrinho no inicio do Século XX, embora isso tenha sido subversão após 64 e hoje seja antiquado.

Em 1860 em função das grandes revoltas na Índia e Guerra Civil nos EUA capitalistas ingleses norte-americanos trouxeram o algodão arbóreo para cultivo na região nordeste, para garantir matéria prima aos teares na Europa e o sistema Mocó Seridó expandiu-se, com a possibilidade acumular capital pela matéria prima, que Delmiro Gouveia subversivamente industrializou em sua manufatora de linhas, tecidos e confecções no município de Pedra/AL. O algodão arbóreo foi chamado de “ouro branco” e muitas bandeiras municipais tinham um capulho pela importância, que até nos anos sessenta e serviu de base para a organização das Ligas Camponesas.

Há mais de duas dezenas de agrônomos nordestinos perguntei sobre esse cultivo e a totalidade deles afirmavam jamais existir tal cultivo e que algodão era o herbáceo (paulistinha) fazendo chacota do “meu desconhecimento”... Gostaria de reencontrá-los para ver seu preparo para a comemoração do Ano Internacional Mundial da Agricultura Familiar da FAO.

No Sul maravilha, a política do trigo contou com infra-estrutura ferroviária, cooperativas de crédito, as de trigo, feijão e milho, além dos moinhos coloniais onde se trocava o serviço de moagem por parte da produção permitia a produção suína, leite e aves.

A partir do Golpe de 1964, os interesses do grupo Rockefeller em consorcio com Cargill, Bunge y Born e outros começa a corrida para a substituição do trigo, cultivo estatal protegido pela soja de interesse industrial com preços controlados pela Bolsa de Chicago e seu sistema especulativo internacional. De lá para cá a posse da terra no Sul foi ficando cada vez mais concentrada e levas de agricultores familiares foram expulsos para a colonização do PR, MS, MT. BA, TO, RO, AM, PA, PI, MA e Santa Cruz de La Sierra e Paraguai. Os que ficaram se transformaram em “produtores rurais”.

Durante os 45 anos da ordem imperialista do GATT as corporações industriais e financeiras submeteram a agricultura aos seus interesses, buscando o gigantismo e centralismo causando a desestruturação extrativista e manufatora dos produtos da natureza e solo para a futura instalação do império e sua total sucumbência à nova Ordem gestada na Rodada Uruguai de 1986 a 1994. A adoção da “agricultura moderna” contou com o autoritarismo, a ciência tecnológica (pacotes tecnológicos), extensão rural, comunicação, ensino e políticas públicas multilaterais e nacionais avassaladoras através de créditos e indução desenvolvimentista.

Em paralelo à implantação das monoculturas, êxodo rural e devastação acelerada do solo, meio ambiente e natureza foi planejado pela inteligência financeira dos países industriais, a resistência de uma minoria, com ousadia de “inocentes úteis” e ONGs subvencionadas para a lenta e gradual restauração da visão romântica, idílica e até mesmo sacralizada da agricultura, como a conquista do paraíso terrestre. Alguns oportunistas aproveitaram a onda para enraizar suas propostas partidárias ou religiosas.

No sul restaram uns poucos agricultores familiares obrigados a integrarem-se nas cadeias do fumo, lácteos, aves, suínos, peixes e “hortifrutigranjeiros” como empresários de alta capacidade de inversão e manejo de capital, distantes do conceito de agricultura familiar tradicional, pois são integrados como nas linhas de montagem do “taylorismo” e “fordismo” do modelo da agricultura norte-americana, da União Européia e Japão. As antigas cooperativas foram substituídas pelas cooperativas de serviços e consumo, intimamente ligadas à empresas de tecnologia, logística e insumos. Repetimos, onde o risco de exclusão é afastado através da obrigação de inversão continua e crescente de capital.

Com a consolidação da Organização Mundial do Comércio os instrumentos do imperialismo FOME e DITADURA são obsoletos e substituídos por controle de mercado como sói ser sob império.

O triste é que muitos não percebem que a fome imperialista transmutou. Muitos festejam a comida distribuída, da mesma forma como festejaram a chegada do “trigo comprado” substituindo o milho e mandioca caseiro no passado. Vejam o mapa da fome em 2014. Ela existe, onde ainda há imperialismo, mas não mais onde há o império.

No último debate da corrida presidencial um candidato reclamou a paternidade do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar. Todos sabem que sua criação foi uma ordem imperial da OMC através da FAO acatada pelo presidente em 1995 e visou que a desregulamentação legal não provocasse uma tragédia na estrutura agrária do Brasil Meridional. Contudo, na época 85% dos contratos do PRONAF foram assinados com fumicultores, subsidiando a indústria fumageira com dinheiro público.

Posteriormente a ordem foi ampliada e diversificada e o nome oficial passou a ser Programa Nacional para o Desenvolvimento da Agricultura Familiar, sem mudar o escopo.
Sobre o PRONAF senti-me envergonhado, traído ao ver na noite anterior às eleições, no Jornal Nacional a denúncia de “agricultores familiares” obrigados a pagar dois contratos tendo recebido somente um e o outro desviado em mais de um milhão de reais para duas pessoas. Desrespeito!

Em Manágua Daniel Ortega fez instalar uma centena de outdoors iluminados, com a consigna: “Arriba los pobres del mundo”. O louvor e identidade aos pobres só partem de quem se crê casta ou classe superior.



Em 1974, ao ditador Geisel foi determinado o PROCAL, onde todo agricultor ao comprar adubos e calcário receberia 40% de reembolso em sua conta no banco. A grande maioria comprava um saco e pedia a nota fiscal de 10 sacos. Isso ficou conhecido como o Escândalo do Adubo Papel. O que as corporações do GATT queriam era o consumo disciplinado de adubo para garantir uma maior fatia na produção da soja.

A FOME do “imperialismo” transmutou e agora no “império” a ordem é glorificar a Propriedade Familiar para disfarçar as intenções das corporações da indústria de alimentos e Agronegócios de tirar do camponês a condição de produtor de alimentos. No império ele só produz matérias primas que a indústria transforma em alimentos e é oferecido ao consumidor após passar na caixa registradora, tanto faz com “cartão magnético” ou dinheiro vivo.

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*Engenheiro Agrônomo e Floresta, ambientalista e escritor

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