Estive ontem, novamente, em Tavares, peculiar cidade na região, onde nasceu o RS. A primeira vez foi em 1997. Nossa bolsista da Pedagogia, muito politizada e militante, solicitou minha insign(ificante) presença no curso da CUT-RURAL destinado a agricultores na cidade vizinha, Mostardas. Fui em meu carro o que me custou uma multa por passar em um controlador eletrônico de velocidade a 96 km por hora às 4h da madrugada, sem perceber, pois tinha de chegar as 7h para a aula.
A aula era sobre Biodiversidade, um tema “cretino” que os que não a têm dão preço mercantil, enquanto os que a têm dão apenas valor sem preço. Estruturas são criadas para enganar e corromper, e os governos dependentes dançam conforme o tilintar das moedas.
Quando raiou o dia, comecei ficar assustado. Em todas paradas de ônibus (a cada quilômetro) havia uma bela construção de tijolos escrito: “Cidade Açoriana de Mostardas”. Eu, feliz, dirigia e devaneava sobre o “babaco” cultivado no Arquipélago dos Açores, que conheci no Peru, de Velasco Alvarado, CAP e CNA, muito cultivado pelos indígenas. O babaco é um primo irmão do mamão, que não tem sementes, por ser um híbrido natural, e que fora comida de todos os estudantes que se ajuntavam naquela Reforma Agrária, em suas férias. Nunca escutei tanta ária militar como naquele período, mas, à noite aprendi a embriagar-me com o som da quena, picullo e charango. Açores, de onde vieram os casais para colonizar pioneiramente o Rio Grande do Sul (Rio Grande, São José do Norte, Tavares e Mostardas, Palmares e Capivari), cultivando trigo, centeio, uvas, criaram gado e se tornaram seus maiores produtores no Brasil de então. Era também a região com o maior número de juntas de bois.
O devaneio continuou: O Arquipelago dos Açores é muito famoso por duas razões: Centro internacional de estudos científicos de Ecologia, e pela Base norte Americana. Na Guerra do Yom Kippur/Ramadã, em 1973, quando as linhas Bar Lev foram contornadas e deram um susto a Israel, e maior ainda aos Estados Unidos. Usavam uns foguetinhos chamados SAM-2 e SAM-7, que derrubava os aviões Mirage modificados de Israel (Nesher e Kfir), e pior ainda, os caros A4 Skyhawk yankees), destruindo 2/3 da aviação israelense e supremacia aérea.
Da Base Atlântica dos Açores os aviões norte-americanos tinham suas insígnias borradas e repintadas com as de Israel e, dizem as más línguas, que os pilotos norte-americanos voluntários os levavam até à combate, até os pilotos israelenses chegarem ao Açores posteriormente...
Ao chegar ao curso, fiquei aturdido, pois jamais vira uma concentração tão grande de afro-descendentes, mais de ¾ dos alunos. Acostumado a brincar em alemão em algumas cidades das Missões e Alto Uruguai, ou brincar em Veneto, com os da serra gaúcha e malambear com o castelhano entre os fronteiriços, imediatamente chamei a Thaís, nossa estagiaria, para aclarar minha vergonhosa ignorância. “ – É que aqui havia uma grande concentração de Quilombos, Tião”. Embasbacado, refleti: O isolamento, baixo valor da terra, quase pura areia e inacessibilidade deve ser a razão, afinal, ainda não havia lido o trabalho, recém lançado, “Pampa Negro: Quilombos no RS de Mario Maestri”... O caminho denominado hoje “Estrada do Inferno”, imagine como seria em meados dos 1800 no auge das charqueadas de interesse inglês e da coroa imperial.
Entre os presentes, estava uma jovem doutoranda, de origem japonesa, que era agrônoma e antiga conhecida. Para quebrar o gelo, evitando apresentações,comecei: Biodiversidade é a abordagem, mas não sabendo como começar, vou assobiar e estalar os dedos, chamando meu “Caboclo Inusitado”, eclético por trabalhar com a Linha da Mata, Linha do Oriente e todos os orixás africanos. Todos entenderam e riram... Foi uma das melhores aulas que dei em minha vida. A colega nisei me felicitou por haver “construído o conceito de biodiversidade para eles de forma inovadora”. Eu tinha, e tenho, horror das ONGs (mercenárias) que importavam conceitos “caixa preta” e aplicam por dinheiro, aliás, muito comum na área rural, ambiental...
Ali conheci um RS encoberto por uma sombra rara. Voltei rebatizando toda as paradas de ônibus como Mostardas cidade “Afro-açoriana” ou “Açoriano-africana”. Era imperioso fazer algo, e havia como.
Na Pró-Reitoria, onde trabalhávamos, na UFRGS, havia o “Convivência” um projeto pioneiro, nascido da ansiedade estudantil em conhecer e conviver com o Brasil real. Na área rural, levávamos todos os estudantes interessados às áreas de Assentamento de Reforma Agrária (a experiência peruana ajudou muito para não permitir turismo exótico. Onde éramos vistos na chegada como “bonitos” (sentido de exótico), mas, em poucos minutos, conquistávamos, não só amizade, como respeito. O mais lindo convivência foi meses depois, instalados nas áreas quilombolas, com mais de 50 estudantes que ficavam hospedados nas casas dos quilombolas, e viviam como eles e com eles, sem levar nada de fora daquela realidade.
Imagine um jovem da nata da elite gaúcha, em uma Universidade onde era raríssimo encontrar um moreno (exceção aos funcionários subalternos), quanto mais um afro-descendente, propiciar àquela família anfitriã o convívio com um universitário sob sua guarda, tutela como um filh@... enriquecê-lo com o conhecimento da história da Fazenda de Casca, parcela de sesmaria doada a um grupo de negros por haverem protegido o proprietário durante à Guerra do Paraguai, e retornado vivo com ele. Terras depois que foram usurpadas de seus proprietários por governos e sociedade corrupta. Casca, só muito recentemente transformada em quilombo oficial, sem reintegrar plenamente, ainda, a propriedade e indenização aos seus legítimos descendentes.
Este resgate da extinção fora feito de forma espetacular pelo cientista popular Luiz Agnelo, apelidado de Gordo, que recebera as quatro últimas sementes de uma mãe de santo, que lhe encarregara de preservar junto com os valores históricos e folclórico do Litoral rio-grandense, em especial, no tocante aos quilombolas e cultura africana. A elite universitária ia colher a primeira safra de sopinha cultivada por seus protagonistas e lançado ao povo de Porto Alegre na Feira da Coolméia (foto).
Ele o fizera e não só na sua biologia, mas na etnologia e antropologia, pois entre os açorianos o feijão sopinha substituiu a lentilha das consagrações religiosas e míticas que não vingava nas terra arenosas como a abundante, simbólica e também sagrada semente africana (saúde, felicidade e retorno ao lar). Nós conseguimos com ele mais que seu conhecimento, sabedoria e entusiasmo umas, 250 gramas de sementes do feijão sopinha para plantar entre os quilombolas e pequenos agricultores da região com a articulação da família do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Mostardas Tadeu da Perciúncula. A Brigada Pedagógica foi um sucesso e irradiou entre os estudantes que não haviam participado e provocou algo abundante no ambiente universitário nacional: Ciúme, vaidade e efervescência, sendo as primeiras estimuladas e a última terminantemente proibida.
Uma idiota com nível superior na avaliação da Brigada do píncaro de sua ignorância questionou: - Vocês foram lá para colher feijão para os agricultores. (..) Ficou muda com a resposta: - Nós não colhemos o “sopinha” com as mãos, apenas com o cérebro (sem referencias à Platão e o Mito das Cavernas). Ela se recolheu e instilou seu veneno mais tarde...
O então estudante de jornalismo R. M. Botelho, publicou, em uma revista eletrônica argentina, o artigo "Feijão 'Sopinha', Valores milenares para um desenvolvimento sustentável", sobre a brigada pedagógica - material que foi depois reproduzido, sob a autorização do autor, por uma rede costariquenha de agricultura, e que despertou também interesse de um professor cubano nesta área. Uma estudante de letras muito circunspecta escreveu em premonição a crônica lapidar de título: “Ele não sabia que é proibido”.
Aquelas foram as últimas “brigadas” e “convivências”, logo surgiu uma nova “chefete” que barrou qualquer atividade e queria fazer “convivência” em presídio e castração de cachorro em vilas. Antes de terminar conseguimos trazer um grupo de Rei do Congo para uma apresentação na universidade, mas diante do impedimento de acesso a um dos auditórios, a mesma foi feita no pátio da Faculdade de Educação e juntou mais de mil estudantes... (foto)
Pela ousadia purgamos mais de dois anos de castigo (geladeira) até vir para o NEA-ITCP.
A obra de Luis Agnello expandiu e o feijão sopinha (Vigna unguiculata unguiculata) foi levado para todos o Brasil, principalmente nos assentamentos de Reforma Agrária, pois os livros de Biologia Molecular e Cultivos Estratégicos para o 3º Milênio, da Universidade de Indianna dizem ser uma ótima alternativa para os impactos da Mudança Climática, principalmente nos países pobres. Assim ele clandestinamente embarcou para diversos países da América Latina, em especial, Colômbia, Haiti, Nicarágua, México, Costa Rica, El Salvador e inclusive retornou à África. Junto ao seu par o arroz (Oriza glaberrima) que incursionou pela região como o nome de “arroz quilombola” é a razão da dieta brasileira feijão com arroz, sendo mais tarde ambos por deficiência cultural e interesse mercantil substituídos pelo feijão (Phaseolus) sul-americano e arroz (O. sativa) de origem asiático e agora indo-asiatico.
Em Sergipe em 2002 o feijão sopinha mostrado a Zefa da Guia, (cientista orgânica descendente Palmares & Canudos que tem a guarda de um cemitério com as sepulturas de seus ancestrais desde o inicio do Século XVIII). Ela disse: até a época da minha avó era muito cultivado, pois era a esperança de voltar ao lar (África), depois passaram a dizer que não devia ser cultivado e se perdeu. Em Alagoas consultando anciãos também disseram que cultivar dava azar. Em Areias na Paraíba se transformou em dissertação de mestrado.
Agora em Tavares fui convidado a falar sobre sementes crioulas na Festa dos Guardiões da Semente Crioula. Não precisei invocar o Caboclo Inusitado. Algumas ONGs européias trouxeram este neologismo “sementes crioulas” na década de 80. O milho é chamado de semente crioula no México por mexicanos bem intencionados; a batatinha é chamada de crioula na Bolívia e Peru por gente também muito bem intencionada; e não é diferente a mandioca ser chamada de crioula em todo o Brasil inclusive no meio indígena. Talvez seja por isso que a propaganda de cerveja tenha tanto apelo sexual. Antropólogos e etimólogos devem ser chamados para explicar o significado de “crioulo”.
E concluímos depois de passar pela Fundação Rockefeller e seus Centros Internacionais de Coleção de Sementes em todo o Mundo CIMMYT, CIAT, CIP, ICRISAT, ISARD, IRRI, IITA, ICFOR, CGIAR, mostrar sua visão mercantil comparável com o leite em pó que a diferença do leite materno, precisa de dinheiro para ser adquirido e escondido que não é leite em pó humana, mas leite de vaca e deveria ser dado à bezerro ou tomado apenas por quem não possui natureza. Significamos a importância do “proteoma” sobre o “genoma” de posse de Bill Gates na Arca II em Svalbard.
Voltei de alma lavada todas aquelas camponesas e camponeses presentes entenderam o recado e os doutos técnicos, talvez não entenderam, pois ainda precisam aprender o que Zefa da Guia e o Luis Agnello ensinam. É preferível o radicalismo a ser algodão entre cristais, afinal querendo ou não todos estamos em Casa.
Fui batizado com feijão sopinha como fui batizado no México com milho. Ganhei duas cantigas do Rei do Congo e recebi um breve (patuá) das mãos de uma anciã em uma singela e tocante homenagem do cientista orgânico Luis Agnello e comunidade, agradecendo enviei a novela “Mandinga” para eles. Seria muito egoísmo não contar aos amigos.
*Engenheiro Agrônomo e Florestal, escritor e ambientalista
Nenhum comentário:
Postar um comentário