sábado, 16 de maio de 2015

Omar, um viajante

Todos nós temos em sí desejos e anseios que são maiores do que somos, que nos ultrapassam e nos expandem. Mas, na maior parte da vida, em geral, alimentamos ideias e espaços que mais nos esvaziam do que ampliam.  


Um dia, porém, como que por um estralo de dedos, ilumina-se em nosso interior a necessidade de voar. E diante de uma vida que nos fragmenta, que nos cerca de padrões, regras e superficialidades, descobrimos que precisamos voltar para nós mesmos. Alguns escolhem fazer isso por uma religião; outros, por uma projeto material. Mas também existem os viajantes.

Mais do que turistas, os viajantes – andarilhos, vagabundos ou vagamundos, como se queira – são exploradores de novos horizontes, culturas e experiências. O que fazem é mais que turismo, tem a ver com jogar-se no risco. Sem um motivo definido, formatado ou explicado, apenas se entregam à estrada, e nela, se redescobrem. E por ela se apaixonam.

Assim é Omar, um chileno que conheci, há pouco mais de uma semana, e que está há seis meses pela estrada, em uma bicicleta, que conseguiu em um hostel para ciclistas, na Bolívia, de um francês que lá deixou, e autorizou o seu empréstimo, sob a condição de que o Omar providencie o seu envio para a França– relação rara de confiança, que só entende quem anda pela estrada. História esquisita para quem está fora desse circuito livre e solto das estradas.

Pois bem, por meio de uma rede de intercâmbio, disponibilizei hospedagem a esse viajante andino, já que moro próximo a uma rodovia, e esta seria sua rota para a Argentina, o próximo País que quer chegar.

Uma sexta a noite, no turbilhão de trabalho, recebi a mensagem de Omar, que avisou estava em frente a um Shopping, sem condições de me ligar, porque seu telefone não fazia chamada internacional. Por mensagem de celular para o Face (já que não recebia em meu aparelho) avisou que tentaria um telefone emprestado, mas, senão conseguisse, me esperari na esquina do shopping.

Quando lá cheguei, a primeira surpresa, antes mesmo de conhecê-lo pessoalmente. Estava deitado no parapeito do canteiro daquele grande centro comercial, em plena esquina de uma rua movientada, na escuridão do início da noite desse inverno sulista, lendo Nietzsche. Achei a cena surreal.

A caminhada até casa, de uns 40 min, já serviu para nos conhermos melhor e saber sobre sua trajetória.

Tinha os pais no Chile, era arquiteto formado, mas nunca exerceu a profissão. Resolveu sair pelo mundo. E há cinco anos viaja pela América Latina. Não tem patrocínio, apenas a bicicleta. Carrega uma barraca e seus utensílios de uso diário, bem simplificados. Para comer, em geral, pede restos restaurantes, e diz normalmente receber. E, no que falta de recurso, toca Cuatro, um instrumento venezuelano, maior um pouco que um cavaquinho, e escaleta, espécie de teclado com um canal para sopro. Faz isso no meio de concentrações urbanas em transportes públicos e centros, o que rende-lhe uns trocados.



Durante sua estadia em minha casa, estive com Omar por poucas horas, já que a maior parte do tempo encontrei-me no trabalho, sem poder sequer levá-lo para uma volta. Mas foram momentos bem ricos.

Na primeira noite, mal conversamos, pois estava cansado da viagem. No outro dia, pelo final da tarde, quando cheguei, outra surpresa. O meu hóspede havia estava preparando um jantar vegetariano, e demonstrando suas habilidadesc com uma alimentação alternativa. “Gosto muito de cozinhar”.

Convidei, como já tinha intenção, o Juan, um outro conhecido que nasceu no Chile, mas que cresceu no Brasil. Entre a feitura da comida, o jantar e o café que se seguiu, conversamos sobre muitas coisas. E o cara demonstrou que, não apenas gosta, como cozinha muito bem.




Falemos sobre música e outras artes; ser estrangeiro no Brasil; veganismo e as condições de sê-lo em uma sociedade industrial, educação, religião, estética, política e liberdade. E claro, sobre Chile e Brasil e a comparação entre esssas duas culturas.





Entre as curiosidades que quis esclarecer estava o fato de porque ele estava há tanto tempo viajando e não se preocupava em documentar essa trajetória, com exceção de agumas esparsas fotos de celular. E a resposta foi mais profunda que minha curiosidade.

“Para mim, a paisagem humana é mais interessante, é o que eu acho lindo, é o que faz eu me apaixonar. Já conheci muitos lugares lindos, mas, senão tiver com quem compartilhar, nada adianta. As fotos são a lembrança de um passado já foi, e o presente é um presente que se torna melhor a cada dia”,

Insisti que a memória nos integra, e o registro ajuda a preservá-la. Mas ele parecia estar mesmo convencido a uma transformação intensa e permanente.

“Eu não preciso do que fui. Deixe lá, quero me reiventar. E, a cada momento redescubro novas coisas que demancham minhas certezas anteriores”.

Assim, mesmo em uma última observação, notei a ele que o projeto futuro que pretende seguir, de conseguir patrocínios para continuar sua viagem, vai requerer algum registro, ao que concordou, e se interessou, pela ideia de fazer um blog para postar notas e imagens sobre sua viagem.


A noite foi curta para tanto assunto, regado, a música e reflexões. Tão agradável, que até a Fênix e a Petinha, minhas duas gatas, no início ariscas, se aconchegaram em nossa conversa.

A notícia de que teria que abreviar a sua permanência pegou-me meio de surpresa. Mas é assim a vida de um viajante. Iria para Argentina para encontrar uma conterrânea e realizar um trabalho previamente acertado. Restou-me dar-lhe um abraço e desejar-lhe boa viagem, após um café consistente. E Omar, na mesma serinidade e simpatia que transmitiu nesses dois dias, retribuiu:


Boa viagem, na vida.

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