quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Do Zé Paraíba e de outros rapazes latino-americanos



Acabei de ver, ontem (em gotas), As aventuras de um Paraíba (Marco Altberg, 1982). É a história de Zé (Caíque Ferreira), um nordestino, é recebido no Rio de Janeiro por seu amigo Zé Preto (Lourival Félix), que o acolhe em casa. Zé arranja trabalhos e biscates como pode, seja na construção civil, pedindo esmola em frente a uma igreja ou até mesmo participando de um programa de TV. Até que um dia conhece Branca (Cláudia Ohana), uma jovem cega que ele salva de ser atropelada. O desfecho demarca um final de duplo amor - entre o amigo e mulher amada. O filme tem aspectos caricaturais, tanto do nordestino, quanto do RJ. Mas precisa ser contextualizado. Início dos anos 80 era tempos de sede de abertura. Havia uma ideia geral sobre o nordestino reduzido ao cara que desce para o sul para vencer na vida; e o RJ como um paraíso da permissividade. Mmas a violência - sempre ela - já está ali, retratada cruamente. De qualquer modo, o filme me trouxe a lembrança de alguns nordestinos que conheci, e que tive uma conivência e aprendizado. Um deles, foi o Cigano. Não era 1982, mas 14 anos depois. Por meados dos anos 90, durante alguns meses, eu morei em uma pensão na Cristóvão Colombo, uma Cabeça de Porco, como chamam os nordestinos para esses quartos de aluguel de quinta categoria. Foi a primeira vez que morava fora da casa de meus pais. Ali, pelos meus 25 anos, convivi com figuras interessantes - uma evangélica, um leão de chácara (segurança de boate), uma prostituta, os irmãos mineiros, suspeitos de roubar roupas, entre outras personagens atípicas. Aprendi muito com eles. Sobre sobrevivência, medo e saudade. Cigano era uma dessas pessoas. Portiguar, ariano, cozinheiro expert, tinha um estilo ponta de faca. Era tudo ou nada. Como todos ali, passava por uma fase difícil da vida, mas dizia sempre que "vou dar a volta por cima e ter minha lanchonete". Cansado de suas noites resumidas a trabalho e música à noite, resolveu começar a fazer algo. Em sociedade com um dos irmãos mineiros, começou a produzir salgados na pensão. Um fogão precário, um espaço precário, com utensílios precários. Mas ele era bom, e a coisa acontecia. Ocorre que, lá pelas tantas, se desentendeu com o mineirinho e, conversando comigo, me propôs ser seu sócio. Eu, que já tinha dois empregos, de dia e na madrugada, além da faculdade, resolvi topar, dentro de minhas condições limitadas. Na primeira noite, então, ajudei-lhe no que pude no que sabia.  E o resultado foi uma quantidade razoável de coxinhas, que ficaram atraentes e apetitosas. Colocamos em um isopor limpo e saímos pelas entradas das baladas e boates da Farrapos. Não demoroau para a decepção começar. Ninguém queria saber de comer, só perguntavam pela tal cerveja. Naturalmente, o horário, pelas 22h, convidava mais a isso. Mas, por uma falha de nossa estratégia empreendedora, desprezamos a bebida. E deu no que deu. 2h depois, prosseguíamos com a maioria das cerca de umas 30 a 50 coxinhas que preparamos. Foi aí que o cigano disparou, mais ou menos assim: "Não vou dar o gostinho do deboche àquela loira [dona da pensão]. Vamos comer tudo que puder antes de voltar". Daí, sentamos na beira da calçada, ali mesmo por onde estávamos. E se dedicamos a comer coxinha. Não lembro quantas, mas sei que matei pra lá da vontade de consumir esse salgado naquele dia. E a sobra ele distribuiu entre a galera da pensão. Chamou-me a atenção, já naquela ocasião, o orgulho de cigano, tão forte quanto a sua determinação. Lá foram 20 anos e perdi o contato dele e de todos com que morei naquele lugar. Mas lembranças daquelas pessoas e do momento que atravessei estão vivíssimas e me voltaram quando vi As aventuras de um paraíba. O personagem de Caíque Ferreira, talentoso ator falecido jovem, concentrava essa energia de reinventar-se e superar-se do nordestino, pessoas como nós – a obviedade poetizada por Belchior. Mas, além disso, essa lealdade forte da amizade que se desenvolve a partir do encontro de pessoas de uma diáspora comum. É algo, que, não raro, se joga a própria vida. No caso do filme de Altberg a pegada foi interessante, porque pôs, lado a lado, o amor romântico e o amor da amizade. Ambos fortes e dramáticos, ainda que só um deles cultivado ao nível do desapego. Há algumas cenas no filme que retratam bem isso. Quanto ao Cigano, espero voltar a ver-lhe um dia. Enquanto isso, o cinema e as memórias compensam a ausência.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

O REPOUSO DO GUERREIRO





Era o início dos anos 90, quando as gestões petistas tornavam Porto Alegre modelo de participação e transparência para o Brasil e o Mundo - Orçamento Participativo (Olívio/Tarso); aula pública de Hobsbawm no Glênio Peres (Pilla Vares na SMC); Construtivismo (Esther Grossi na SME) e tantas outras experiências de políticas públicas inovadoras, que renderam um cinturão vermelho de governos do partido pela RMPA e o País. Por esse período, o PMdB de Temer/Sartori também já havia mostrado seu modo de governar, com as longas greves no governo Simon/Guazelli, e o triste episódio, com este último, do Massacre da Praça da Matriz, em 1991. Eu estudava Economia, era líder comunitário e militava no PCB - aos 20 e poucos, naqueles ventos de abertura, óbvio, mudar o Mundo era centro e norte. Enquanto isso, em Alvorada, a 20km da Capital, o PT despontava com um só vereador na bancada, que fazia sua ação valer por 10: Flávio Silva, ou flavinho, pioneiro do partido no parlamento local, raramente era visto em gabinete. Sempre com qualificados assessores, como Vitório Trovão, percorria, diariamente, conselhos populares, a Metroplan, o Daer, as universidades e as organizações civis, acionando a mobilização popular e colecionando conquistas. Na área de transporte público, a sua atuação resultou na abertura de acessos à gerações de trabalhadores e estudantes, em itinerários que o monopólio local, pela pouca lucratividade, ainda desprezava: Ipiranga, NH e Protázio, por exemplo, que hoje são rotas de volumosas demandas de passageiros, e que contribuíram para integrar a cidade às zonas Leste e Oeste da capital e à Região. Tive a honra de integrar uma dessas mobilizações, ainda quando membro do DAH, na Fapa (hoje, Uniritter). Meio Ambiente e serviços urbanos eram outras das frentes de atuação de Flávio. Em um trabalho em sintonia com as gestões, já operantes, de Stela Beatriz Farias Lopes, mobilizava ativistas pela proteção das matas ciliares da Lagoa do Cocão e do Rio Gravataí. Foram três ou quatro mandatos de lutas e vitórias. Mas o tempo passou, e de lá pra cá, os anseios políticos dos brasileiros também se modificaram - para o bem e para o mal. Capitalismo x Socialismo, então, deixou de resumir a utopia da juventude (a q n envelheceu precocemente), ainda que seus ares permaneçam vivos das bases às cúpulas - Trump e Puttin que o digam. E nesse cenário, o transporte público de massa tornou-se o único caminho estrutural possível para responder à altura ao verdadeiro colapso que o trânsito desenha para o futuro do presente das metrópoles brasileiras - mesmo que gestores públicos míopes ignorem isso. Flávio, por sua vez, de sua fase reflexiva, observa distante, ainda que sempre inquieto e indignado. "A política está na nossa veia, porque queremos melhorar a vida". E assim fez, e assim teima em fazer. Sob a chuva fria do fim da tarde desta quinta-feira, na cozinha de sua modesta e histórica morada, na região central da cidade que cresceu e se dedicou, falemos das transformações do cenário sócio-econômico; entre uma interrupção e outra de amigos e vendedores, conversamos também sobre as suas duas décadas e meia de empresário noturno (pós-parlamentar), vendo a cidade por outros ângulos; percorremos lembranças e recuperamos esperanças, de mudanças de ares e de política - a possível, urgente e necessária nesses tempos de perspectivas temerosas e parceladas.




quinta-feira, 7 de setembro de 2017

ESPELHOS MÁGICOS




Há salvadores da água, do fogo e dos vírus. E há também alguns tipos anônimos, que salvam da violência urbana. Pelo mar das periferias ser bem hostil e complexo, para mergulhar nele é preciso ir mais fundo que o corpo: no contexto e na alma. Adalberto P Alegre, experiente navegador nesse oceano, escolheu a imagem como ferramenta para atuar sobre as cabeças de jovens de famílias em situação de de alta vulnerabilidade. Tem feito isso há décadas, e com prazer. Com um histórico de pai de quatro filhos, guarda-municipal, sindicalista, instrutor de serigrafia nas periferias de Porto Alegre, professor de história e de artes visuais, Adalba não se aquieta na base: pesquisa, cria, adapta e transita entre o teórico e a realidade crua; entre a academia e o barraco. Telas, pinhole, celular, produtos e suportes alternativos, vale tudo, tudo é meio. Suas oficinas de fotografia aplicada ao ensino, paralelas ao trabalho na escola, atraem professores, pesquisadores e profissionais de arte, do sul ao norte. Mas não perde o foco. "Íamos em cada casa, levávamos um café e conhecíamos, por dentro, a realidade daquelas crianças, e dali, transformei profundamente o meu olhar como professor; dizia aos meus colegas: o mau-cheiro de alguns deles é muito mais do que uma questão de água e luz, é condição, é autoestima, é esperança. Precisamos descer muito, com humildade e respeito, antes de diagnosticar o que nos é estranho", falava-me ontem, em um agradável café de lembranças e vivências, que tivemos em seu ateliê, no último andar de um prédio discreto, no Centro de Porto Alegre. "Salvamos muitas vidas, e tenho orgulho disso", comenta, sem nenhuma arrogância. Em poucas horas, viajamos no tempo e no espaço - educação, morte, política, fotografia, cinema, e claro, boas lembranças das nosso passado-presente comum na Casa do Estudante da Ufrgs. Risos às lágrimas. Essas voos curtos com pessoas raras sempre nos renovam.