Na onda de todos os protestos que contagiaram o País, surge também um certo discurso de apologia clara ao anticomunismo, comprovando que esse maniqueísmo esquerda-direita, no sentido mais antagônico, nunca deixou de existir. Me surpreende, todavia, o nível de dramaticidade a que chega esse discurso. Toco mais nesse assunto com mais tempo.
E o sortimento de causas nas manifestações refletem isso. E em pouco minutos tenho que seguir, em direção a minha rotina. E penso quando o deixo para trás, com seus problemas e dilemas, que louco ele é... e que louco sou eu...
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Consegui passar no tradicional bairro popular do Mathias Velho e resistir ao cheiro intenso do churrasquinho sem consumir nenhum. Acho que estou tendo avanços no meu projeto de se converter em vegano.
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Ainda como universitário, tive o privilégio de receber Eliane
Brum em minha sala de aula. Ela estava pelo início de carreira, mas suas
crônicas já se destacavam no Zero Hora; não demorou muito para que ela não
coubesse mais lá.
Também somos o chumbo das balas
Reproduzido de Revista Época
O Brasil não mudará em profundidade enquanto a classe média
sentir mais os feridos da Paulista do que os mortos da Maré
ELIANE BRUM
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Autora
de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna
Prestes – O avesso da lenda (Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê
(Arquipélago, Prêmio Jabuti 2007) e O olho da rua - uma repórter em busca da
literatura da vida real (Globo).
elianebrum@uol.com.br
Twitter: @brumelianebrum
(Foto: Lilo Clareto/ Divulgação)
Você está na sala assistindo à TV. Ou está no restaurante,
com seus amigos. Ou está voltando para casa depois de um dia de trabalho. Você
ouve tiros, você ouve bombas, você ouve gritos. Você olha e vê a polícia
militar ocupando o seu bairro, a sua rua. É difícil enxergar, por causa das
bombas de gás lacrimogêneo, o que aumenta o seu medo. Logo, você está sem luz,
porque a polícia atirou nos transformadores. O garçom que o atendia cai morto
com uma bala na cabeça. O adolescente que você conhece desde pequeno cai morto.
Um motorista está dirigindo a sua van e cai ferido por um tiro. Agora você está
aterrorizado. Os gritos soam cada vez mais perto e você ouve a porta da casa do
seu vizinho ser arrombada por policiais, que quebram tudo, gritam com ele e com
sua família. Em seguida você vê os policiais saírem arrastando um saco preto. E
sabe que é o seu vizinho dentro dele. Por quê? Você não pergunta o porquê, do
contrário será o próximo a ser esculachado, a ter todos os seus bens, duramente
conquistados com trabalho, destruídos. Se você está em casa, não pode sair. Se
você está na rua, não pode entrar.
O que você faz?
Nada.
Você não faz nada porque não aconteceu com você. Você não
faz nada especialmente porque se sente a salvo, porque sabe que não apenas não
aconteceu, como não acontecerá com você. Não aconteceu e não acontecerá no seu
bairro. Isso só acontece na favela, com os outros, aqueles que trabalham para
você em serviços mal remunerados.
Aconteceu na Nova Holanda, no Complexo da Maré, no Rio de
Janeiro, na segunda-feira passada (24/6). Com a justificativa de que pessoas se
aproveitavam da manifestação que ocorria na Avenida Brasil – o nome sempre tão
simbólico – para fazer arrastão, policiais ocuparam a favela. Um sargento do
BOPE morreu e a vingança da polícia começou, atravessou a madrugada e boa parte
da terça-feira. Saldo final: 10 mortos, entre eles “três moradores inocentes”.
Os brasileiros foram às ruas, algo de profundo mudou nas
últimas semanas, tão profundo que levaremos muito tempo para compreender. Mas
algo de ainda mais profundo não mudou. E, se esse algo ainda mais profundo não
mudar, nenhuma outra mudança terá o peso de uma transformação, porque nenhuma
terá sido capaz de superar o fosso de uma sociedade desigual. A desigualdade
que se perpetua no concreto da vida cotidiana começa e persiste na cabeça de
cada um.
Quando a polícia paulista reprimiu com violência os
manifestantes de 13 de junho, provocando uma ampliação dos movimentos de
protesto não só em São Paulo, mas em todo o Brasil, houve um choque da classe
média porque, dessa vez, muitos daqueles que foram atingidos por balas de
borracha e bombas de gás lacrimogêneo eram seus filhos, irmãos e amigos. Como
era possível que isso acontecesse?
Era possível porque a polícia militar – e não só a de São
Paulo, como se sabe e tem se provado a cada manifestação, nas diversas cidades
– agiu no centro com quase a mesma truculência com que cotidianamente age nas
favelas e nas periferias. Quase com a mesma truculência, porque algumas vozes
se levantaram para lembrar que nas margens as balas são de chumbo. Balas de
borracha, como foi dito em tom irônico, seria um “upgrade”. A polícia fez,
portanto, o que está acostumada a fazer no dia a dia das periferias e favelas,
o que é ensinada e autorizada a fazer. E muitos policiais devem ter se
surpreendido com a reação da opinião pública, já que agem dessa maneira há
tanto tempo e as reclamações em geral ficavam, até então, limitadas às mesmas
organizações de direitos humanos de sempre.
E então veio a Maré. E, em vez de balas de borracha, as
balas eram de chumbo. Em vez de feridos, houve mortos. E, ainda que o massacre
tenha tido repercussão, especialmente no Rio de Janeiro, ela foi muito menor e
menos abrangente do que quando a violência foi usada no centro de qualquer
cidade. Por quê? Seriam os brasileiros da Maré ou de outras favelas menos
brasileiros do que os outros? Seriam os humanos da Maré ou de outras periferias
menos humanos do que os outros? Sangrariam e doeriam os moradores da Maré menos
do que os outros?
É preciso que a classe média se olhe no espelho, se existe
mesmo o desejo real de mudança. É preciso que se olhe no espelho para encarar
sua alma deformada. E perceber que essa polícia reflete pelo menos uma de suas
faces. Parece óbvio, do contrário essa polícia não seguiria existindo e agindo
impunemente, mas às vezes o óbvio é esquecido em nome da conveniência.
É fácil renegar a polícia militar como algo que não nos diz
respeito, como sempre fazemos com as monstruosidades que nos envergonham. Sem
precisar assumir que essa polícia existe como resultado de uma forma de ver a
sociedade e se posicionar nela – uma forma que perpetua a desigualdade,
dividindo o país entre aqueles que são cidadãos e têm direitos e aqueles que
não têm nenhum direito porque, mesmo que trabalhem dura e honestamente, são
criminalizados por serem pobres.
No momento em que os mortos da Maré incomodam menos que os
feridos da Paulista ou de outros lugares do Brasil, se justifica e legitima a
violência da polícia. Se justifica e legitima de várias maneiras – e também por
aqueles que sentem menos a violência da Maré do que a da Paulista, apesar de
ela ser numa proporção muito maior, a começar pela diferença das balas. Se
justifica e se legitima e se perpetua porque, ainda que não confessado, mas
claramente expressado, vive-se como se os mais pobres, os que moram em favelas
e periferias, pudessem ter suas casas invadidas, seus bens destruídos e suas
vidas extintas.
Se fosse você ou eu na Maré, reconheceríamos os rostos dos
que tombam e estaríamos lá, aterrorizados com a possibilidade de sermos os
próximos a virar estatística. O garçom que caiu morto com um tiro na cabeça é
Eraldo Santos da Silva, 35 anos. Quem estava no restaurante contou que os
policiais do BOPE atiraram no transformador para o local ficar às escuras e
então mudar a cena do crime, retirando as cápsulas do chão. O garoto de 16 anos
que foi assassinado se chama Jonatha Farias da Silva. A polícia disse que ele
estava com uma arma na mão, mas várias pessoas que o conhecem desde criança
afirmam ser impossível. Jonatha é descrito como um menino tímido e muito
sozinho que perdeu a mãe de tuberculose aos 11 anos e vivia com um irmão mais
velho num quarto de quatro metros quadrados. Engraxava sapatos e vendia
biscoitos nos congestionamentos da Linha Vermelha para sobreviver, enquanto
sonhava com ser mecânico. O motorista ferido quando dirigia a van alvejada por
tiros é Cláudio Duarte Rodrigues, de 41 anos. Foi levado ao hospital por
moradores, mas despachado para casa com a bala ainda alojada no glúteo. Só
depois uma ONG obteve a promessa de uma ambulância para buscá-lo. Você ainda
poderia ser a empregada doméstica que ouviu os policiais arrombarem a porta da casa
do seu vizinho, ouviu seus gritos – “Me larga! Socorro!” – e o viu ser retirado
de lá, dentro de um saco preto.
Mas isso não acontece com você, nem com seus filhos. Nem
comigo. Mas, ainda que não aconteça, como é possível sentirmos menos? Ou mesmo
não sentir? Ou ainda viver como se isso fosse normal? Ou olhar distraidamente
para a notícia no jornal e pensar: “mais uma chacina na favela”?
Em que nos transformamos ao sentir menos a morte de uns do
que a de outros, a dor de uns do que a de outros, mesmo quando olhamos para uns
e outros apenas pela TV?
O que torna isso possível?
É preciso parar e pensar. Porque esses, que assim morrem, só
morrem porque parte da sociedade brasileira sente menos a sua morte. É cúmplice
não apenas por omissão, mas por esse não sentir que se repete distraído no
cotidiano. Por esse não sentir que não surpreende ninguém ao redor, às vezes
nem vira conversa. Essa polícia que mata nos reflete, por mais que recusemos
essa imagem no espelho.
São vários os discursos que se imiscuem na vida cotidiana e
penetram em nossos corações e mentes, justificando, legitimando e perpetuando a
ideia de que a vida de uns vale menos do que a de outros, de que a vida dos
mesmos de sempre vale menos do que a dos mesmos de sempre. Um desses discursos
é a afirmação, que nesse caso foi assumida e amplificada por parte da imprensa,
de que a polícia teria admitido que “três moradores mortos eram inocentes”. A
frase tem tom de denúncia, ao afirmar que a polícia reconheceu a morte de
“inocentes” na Maré. A declaração expressa, de fato, a ideia de que ao menos
esses três não deveriam ter sido assassinados. Por oposição, cabe a pergunta: e
os outros deveriam?
Essa frase diz ainda mais: se “três são inocentes”,
aceita-se automaticamente e sem maior investigação que os demais seriam
suspeitos de tráfico e outros crimes – e destes, quase nada ou nada é contado.
É nesse ponto que se oculta algo ainda pior contido nesse discurso, que é a
aceitação da pena de morte de suspeitos. Ou seja, os supostamente “não
inocentes”, os supostamente “bandidos”, “traficantes”, “vândalos” poderiam,
então, ser mortos? É isso o que se diz nas entrelinhas. Mas não seriam todos
“inocentes”, até julgamento em contrário, dentro do ritual jurídico previsto
pelo Estado de direito? Sem contar que a lei brasileira não prevê a pena de
morte de julgados e condenados por crimes, nem sequer os hediondos. Mas o
Estado, com o aval de uma parte significativa da sociedade, executa suspeitos.
A aceitação dessa quebra cotidiana da lei pelo Estado está
presente na narrativa dos acontecimentos – e a imprensa tem um papel importante
na reprodução desse discurso: “três deles eram inocentes”, “morreram em
confronto”, “morreu ao resistir à prisão”, “troca de tiros” são algumas das
expressões entranhadas nos nossos dias como se tudo explicassem. Como se isso
fosse corriqueiro – e não monstruoso. Mesmo para a morte de “inocentes”, fora
as mesmas vozes dissonantes de sempre, se atribui expressões como “efeito
colateral”. E parece ter sido fácil para a classe média aceitar que o “efeito
colateral” é a morte dos filhos, dos irmãos, dos pais e das mães dos pobres.
Em um artigo no site do Observatório de Favelas, que vale a
pena ser lido (aqui), Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré e da
Divisão de Integração Universidade Comunidade PR-5/UFRJ, faz uma análise da
frase dita na TV pelo consultor de segurança pública Rodrigo Pimentel: “Fuzil
deve ser utilizado em guerra, em operações policiais em comunidades e favelas.
Não é uma arma para se utilizar em área urbana”. Ele criticava, em 18/6, a
imagem de um policial militar atirando para o alto com uma metralhadora, perto
de manifestantes que praticavam ações violentas em frente à Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro. Como afirma Eliana, parece um comentário “natural,
racional e equilibrado”, mas, de fato, o que ele está dizendo? Que na favela
pode. E, fora uma ou outra voz, como a dela, não causa nenhuma surpresa. Nem
mesmo se estranha que na favela pode, nos protestos do centro não.
A palavra “confronto” encobre forças desiguais – e o que tem
sido chamado de “confronto” seguidamente não é o que diz ser. Mesmo em
confrontos de fato trata-se o que é desigual como se fosse igual, também
simbolicamente. Como se uma das forças em confronto não encarnasse o Estado e
tivesse, portanto, de respeitar a lei e seguir parâmetros rígidos de conduta –
e não igualar-se a quem supostamente está no outro lado. Como se a polícia,
como aconteceu na Maré, tivesse autorização para se vingar pela morte –
lamentável – do sargento do BOPE, entrando na favela e arrebentando. E o
sargento do BOPE Ednelson Jerônimo dos Santos Silva, 42 anos, é também uma
vítima desse sistema avalizado por uma parte significativa da sociedade dita
“de bem”.
A questão é que, se a polícia não tem autorização de direito,
tem de fato. E tem porque a classe média sente menos a dor dos pobres. Tem
autorização porque uma parcela da sociedade primeiro criminaliza os pobres – e,
depois, naturaliza a sua morte. É por isso que a polícia faz o que faz – porque
pode. E pode porque permitimos. A autorização não é dos suspeitos de sempre,
apenas, mas de parte considerável dessa mesma classe média que vai às ruas
gritar pelo fim da corrupção. Mas haverá corrupção maior, esta de alma, do que
sofrer menos pelos mortos da Maré do que pelos feridos da Paulista?
A autorização para a morte dos pobres é de cada um que sente
mais as balas de borracha da Paulista do que as balas de chumbo da Maré.
Sentir, o verbo que precede a ação – ou a anula.
“Estado que mata, nunca mais!” é o chamado de um ato
ecumênico marcado para as 15h desta terça-feira (2/7), com concentração na
passarela 9 da Avenida Brasil, pelos moradores da Maré. A manifestação,
anunciada como “sem violência e pacífica”, pretende lembrar os 10 mortos de 24
e 25 de junho, inclusive o sargento do BOPE. “Não é mais aceitável a política
militarizada da operação do estado nos territórios populares, como se esses
locais fossem moradas de pessoas sem direitos. Responsabilizamos o governador
do Estado e o secretário de Segurança Pública pelas ações policiais nas
favelas. Exigimos um pedido de desculpas pelo massacre e o compromisso com o
fim das incursões policiais nas favelas cariocas, sustentadas no uso do
Caveirão e de armas de guerra”, diz a chamada na internet.
Este ato poderá se tornar um momento de inflexão nos
protestos que atravessam o país. Saberemos então se os cidadãos das favelas
estarão sozinhos, como sempre, ou acompanhados pelas mesmas organizações de
direitos humanos de sempre – ou se o Brasil está, de fato, disposto a começar a
curar sua abissal e histórica cisão.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras)
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